Content-Type: message/rfc822; name="Re: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequ_ncia.." Return-Path: Received: from mail.lsit.ucsb.edu ([unix socket]) by stan (Cyrus v2.2.3-Gentoo) with LMTP; Mon, 02 Aug 2004 12:10:06 -0700 X-Sieve: CMU Sieve 2.2 Received: from localhost (localhost [127.0.0.1]) by localhost (Postfix) with ESMTP id E51B259B6 for ; Mon, 2 Aug 2004 12:10:06 -0700 (PDT) Received: from mail.lsit.ucsb.edu ([127.0.0.1]) by localhost (stan [127.0.0.1]) (amavisd-new, port 10025) with ESMTP id 03498-20 for ; Mon, 2 Aug 2004 12:09:58 -0700 (PDT) Received: from ucsbuxa.ucsb.edu (ucsbuxa.ucsb.edu [128.111.125.82]) by mail.lsit.ucsb.edu (Postfix) with ESMTP id A72505828 for ; Mon, 2 Aug 2004 12:09:58 -0700 (PDT) Received: from ucsbuxa (listserv.ucsb.edu [128.111.125.159]) by ucsbuxa.ucsb.edu (8.11.6p2/8.8.5) with ESMTP id i72J9vo14085 for ; Mon, 2 Aug 2004 12:09:57 -0700 (PDT) Received: from host2.hostseguro.com (66-98-192-97.hostseguro.com [66.98.192.97]) by ucsbuxa.ucsb.edu (8.11.6p2/8.8.5) with ESMTP id i72J9to14077 for ; Mon, 2 Aug 2004 12:09:55 -0700 (PDT) Received: from [201.10.145.136] (helo=desktopjansy) by host2.hostseguro.com with asmtp (Exim 4.34) id 1BriBZ-0002xi-4u for NABOKV-L@LISTSERV.UCSB.EDU; Mon, 02 Aug 2004 16:09:42 -0300 Message-ID: <006a01c478c3$6c8248d0$6b07a8c0@desktopjansy> From: "Jansy Berndt de Souza Mello" To: "Vladimir Nabokov Forum" References: <001d01c478bf$45794a80$6401a8c0@Don> Subject: =?utf-8?Q?Re:_O_amor=2C_em_Vladimir_Nabokov=2C?= =?utf-8?Q?_tem_essa_consequ=C3=AAncia..?= Date: Mon, 2 Aug 2004 16:03:37 -0300 MIME-Version: 1.0 Content-Type: multipart/related; type="multipart/alternative"; boundary="----=_NextPart_000_0066_01C478AA.44FD9760" X-Priority: 3 X-MSMail-Priority: Normal X-Mailer: Microsoft Outlook Express 6.00.2800.1437 X-MimeOLE: Produced By Microsoft MimeOLE V6.00.2800.1441 X-AntiAbuse: This header was added to track abuse, please include it with any abuse report X-AntiAbuse: Primary Hostname - host2.hostseguro.com X-AntiAbuse: Original Domain - listserv.ucsb.edu X-AntiAbuse: Originator/Caller UID/GID - [47 12] / [47 12] X-AntiAbuse: Sender Address Domain - aetern.us X-Source: X-Source-Args: X-Source-Dir: X-Virus-Scanned: by amavisd-new at mail.lsit.ucsb.edu X-Spam-Status: No, hits=-4.5 tagged_above=-1000.0 required=2.0 tests=BAYES_00, HTML_FONT_BIG, HTML_MESSAGE X-Spam-Level: This is a multi-part message in MIME format. ------=_NextPart_000_0066_01C478AA.44FD9760 Content-Type: multipart/alternative; boundary="----=_NextPart_001_0067_01C478AA.44FD9760" ------=_NextPart_001_0067_01C478AA.44FD9760 Content-Type: text/plain; charset="utf-8" Content-Transfer-Encoding: quoted-printable =20 Dear Don, it seems that you sent more than you intended to in your = Nabokov-L posting. Anyway, here is the Nabokov sighting that I had sent = you a few weeks ago. It was published in the "Folha de S=C3=A3o Paulo" = special edition. The first text offers a translation of Rorty=C2=B4s = comment on Pale Fire, since a new revised translation of this novel was = announced at that time. The second text is Michael Maar=C2=B4s. REVIVENDO OS VIVOS=20 Patrim=C3=B4nio Vladimir Nabokov/Reprodu=C3=A7=C3=A3o O escritor Vladimir Nabokov=20 FIL=C3=93SOFO NORTE-AMERICANO DISCUTE "FOGO P=C3=81LIDO", DE = VLADIMIR NABOKOV, REEDITADO AGORA NO BRASIL=20 por Richard Rorty A imagina=C3=A7=C3=A3o, dizia Wallace Stevens, =C3=A9 a mente = reagindo =C3=A0 press=C3=A3o da realidade. Mas =C3=A9 do interesse da = realidade -ou seja, da imagina=C3=A7=C3=A3o dos mortos- que nenhuma nova = rea=C3=A7=C3=A3o seja necess=C3=A1ria: que a imagina=C3=A7=C3=A3o dos = vivos n=C3=A3o possa fazer nada sen=C3=A3o reiterar li=C3=A7=C3=B5es = previamente aprendidas e exemplificar verdades j=C3=A1 sabidas. = Resenhadores de bom senso devem pressupor que n=C3=A3o se pode escrever = nada de genuinamente novo, pois s=C3=B3 assim estar=C3=A3o em = condi=C3=A7=C3=A3o de julgar o livro que est=C3=A3o resenhando sem o = perigo de se verem julgados por este. =C3=80 maneira do resenhador de = bom senso, o leitor comum sente-se nervoso diante de livros que n=C3=A3o = s=C3=A3o suficientemente semelhantes aos livros que ele leu no passado. Vladimir Nabokov (1899-1977) escreveu livros nada parecidos aos = demais e que raramente tiveram boas resenhas. A maior parte dos = cr=C3=ADticos fez eco ao dito de Samuel Johnson -nada de estranho pode = durar- e cuidaram de diagnosticar as esquisitices de Nabokov como = =C3=ADndices de seu desd=C3=A9m ego=C3=ADsta pela realidade, desd=C3=A9m = que encobria sua incapacidade de imitar a realidade persuasivamente. = Simon Raven, resenhando "Fogo P=C3=A1lido" em 1962, ano de sua = publica=C3=A7=C3=A3o, afirmou que n=C3=A3o se tratava de "um romance, = mas de um prot=C3=B3tipo". A resenha de Saul Maloff explicava que, = "desde sempre, a raz=C3=A3o de ser do romancista" =C3=A9 "a = cria=C3=A7=C3=A3o de um mundo", ao passo que Nabokov criara apenas "uma = constela=C3=A7=C3=A3o de bibel=C3=B4s elegantes e maravilhosos -por = defini=C3=A7=C3=A3o, uma arte menor". Resenha atr=C3=A1s de resenha = reconhecia o engenho de Nabokov e lamentava sua auto-sufici=C3=AAncia, = seu deleite com os pr=C3=B3prios truques, truques que punham a nu a sua = falta de respeito pela realidade e pelo leitor comum. Dwight Macdonald = declarou o livro "ileg=C3=ADvel", sublinhou que, mesmo em seus melhores = momentos, Nabokov era "menor" e insistia que "os esmeros t=C3=A9cnicos = que Nabokov dedica ao projeto s=C3=A3o t=C3=A3o ostensivos que acabam = por destruir todo o prazer est=C3=A9tico do leitor". Incomodado pelo = fato de Mary McCarthy ter considerado ""Fogo P=C3=A1lido" uma = cria=C3=A7=C3=A3o de perfeita beleza, simetria, estranheza, = originalidade e verdade moral", Macdonald explicava que tanto o romance = como a resenha de McCarthy eram "exerc=C3=ADcios de engenho = despropositado". Nabokov n=C3=A3o tinha nenhum interesse na cria=C3=A7=C3=A3o de um = mundo como aquele a que Raven, Maloff e Macdonald estavam acostumados. = Certa vez, declarou que "dizemos que uma coisa =C3=A9 semelhante a tal = outra coisa, quando o que realmente adorar=C3=ADamos seria descrever = algo que n=C3=A3o tem par na terra". Era esse o anseio que tanto = incomodava tantos resenhadores. Para aqueles que gostariam que a = realidade fosse tratada com o devido respeito, esse anseio =C3=A9 um = =C3=ADndice de auto-sufici=C3=AAncia ego=C3=ADsta. "Ego=C3=ADsmo" =C3=A9 = o nome que a realidade d=C3=A1 a tudo o que chama aten=C3=A7=C3=A3o para = si mesmo -tudo o que =C3=A9 estranho, duro de entender, dif=C3=ADcil de = acompanhar. Quem respeita a realidade, quem tem certeza de que n=C3=A3o = h=C3=A1 por que submet=C3=AA-la a novas press=C3=B5es, dir=C3=A1 que = tudo o que =C3=A9 digno de nota j=C3=A1 faz parte da realidade e precisa = apenas ser representado com precis=C3=A3o. O que n=C3=A3o faz parte da = realidade =C3=A9 subjetivo, pessoal, idiossincr=C3=A1tico, tolo, pueril, = evanescente, indigno de nota. Pois, para olhos respeitadores, a = realidade =C3=A9 a =C3=BAnica autoridade leg=C3=ADtima. O anseio do = poeta em exercer press=C3=A3o sobre a realidade parece n=C3=A3o apenas = f=C3=BAtil, mas ainda moralmente equ=C3=ADvoco. Agora, os cr=C3=ADticos e historiadores da literatura = come=C3=A7aram a reconhecer que o livro, afinal de contas, h=C3=A1 de = durar. Aos poucos, o romance vai adquirindo a aura de um cl=C3=A1ssico, = obra de uma das imagina=C3=A7=C3=B5es mais poderosas que o s=C3=A9culo = 20 criou. Essa esp=C3=A9cie de reconhecimento =C3=A9 um dos expedientes = de que a realidade lan=C3=A7a m=C3=A3o para n=C3=A3o ter que admitir o = golpe que levou. Como se, na calada da noite, sem ningu=C3=A9m por = perto, a realidade emitisse pseud=C3=B3podos para incorporar o = =C3=BAltimo corpo estranho. De manh=C3=A3, a realidade estar=C3=A1 = t=C3=A3o fresca e rija quanto antes (mesmo que um pouquinho crescida). E = algo que de fato n=C3=A3o tinha par na terra se converte em mais um fato = terrestre e objetivo, =C3=A0 espera de ser observado. =C3=80s vezes, = por=C3=A9m, quando o corpo estranho =C3=A9 grande demais ou complexo = demais, o processo de assimila=C3=A7=C3=A3o n=C3=A3o estar=C3=A1 = conclu=C3=ADdo quando a manh=C3=A3 chegar. Nesses casos, podemos = surpreender a realidade sugando a vida de uma met=C3=A1fora ou = convertendo um paradoxo numa platitude ou dando fei=C3=A7=C3=B5es de = cl=C3=A1ssico a um esc=C3=A2ndalo. "Lolita" n=C3=A3o se parecia a nada que Morris Bishop, bom leitor, = bom homem e melhor amigo de Nabokov em Cornell, tivesse lido; seu asco = diante da sordidez de Humbert impediu-o de ler o manuscrito at=C3=A9 o = fim. Trinta anos mais tarde, a neta de Bishop teve de ler "Lolita" na = escola secund=C3=A1ria. =C3=80 medida que "Lolita" e "Fogo P=C3=A1lido" = se convertam em leitura curricular e tema de prova, Humbert Humbert e = Charles Kinbote vir=C3=A3o a ser personagens liter=C3=A1rios conhecidos, = componentes familiares da realidade em que crescemos. Quanto mais isso = aconte=C3=A7a, mais prov=C3=A1vel ser=C3=A1 que ambos se fundem =C3=A0 = figura de seu criador, mais prov=C3=A1vel ser=C3=A1 que os leitores de = Nabokov pensem que est=C3=A3o lendo sobre Nabokov, quando na verdade = est=C3=A3o lendo sobre esses dois monstros encantadores. Quanto mais se = fa=C3=A7a essa identifica=C3=A7=C3=A3o inconsciente, menos se = recordar=C3=A3o as pessoas de que Humbert e Kinbote manipulam as = fam=C3=ADlias Haze e Shade e, em especial, seus membros mais jovens, = Lolita Haze e Hazel Shade. Brian Boyd, cuja espl=C3=AAndida biografia serve bem =C3=A0 causa = de Nabokov, ao tornar menos f=C3=A1cil a incorpora=C3=A7=C3=A3o de seus = livros, conta que, entre todos os personagens de seus romances que = Nabokov admirava como seres humanos, Lolita s=C3=B3 perdia para Pnin. = Mas os leitores de Lolita muitas vezes t=C3=AAm dificuldade para = conseguir focaliz=C3=A1-la. Parecem n=C3=A3o lembrar de nada al=C3=A9m = da criatura de Humbert, sua inven=C3=A7=C3=A3o: a ninfeta, mais que a = garotinha. De modo que =C3=A9 dif=C3=ADcil aceitar a id=C3=A9ia de que ela = fosse um espl=C3=AAndido ser humano. Mesmo assim, como os leitores de = "Lolita" recordar=C3=A3o vagamente, a garota era valente: de algum modo, = ela conseguiu se livrar de Quilty e encontrou um bom homem, capaz de lhe = dar um filho. Constituiu um lar para ele e para a crian=C3=A7a que devia = nascer perto do Natal em Gray Star, "um povoado no noroeste mais = remoto", onde faz muito frio. Pensando bem, Nabokov diz em alguma = passagem que Gray Star =C3=A9 "a capital do livro". =C3=89 ent=C3=A3o = que nos damos conta novamente: Humbert era o =C3=BAnico a pensar que = havia inventado Lolita; n=C3=B3s n=C3=A3o t=C3=ADnhamos por que achar o = mesmo. N=C3=B3s dever=C3=ADamos lembrar que Humbert era dado a esquecer: = os solu=C3=A7os de Lolita durante a noite, seu irm=C3=A3o morto, a = crian=C3=A7a que teria substitu=C3=ADdo o irm=C3=A3o. Como esquecemos? Esquecemos porque Nabokov cuidou que esquec=C3=AAssemos = temporariamente. Ele programou tudo para que esquec=C3=AAssemos primeiro = e lembr=C3=A1ssemos depois, confusos e culpados. Seu livro segue nos = manipulando mesmo depois de fechado. A raz=C3=A3o pela qual ser=C3=A1 = relativamente dif=C3=ADcil transformar "Lolita" em um cl=C3=A1ssico = =C3=A9 que n=C3=B3s, guardi=C3=B5es da legitimidade, servos da = realidade, s=C3=B3 podemos fazer coment=C3=A1rios abalizados sobre um = romance e encontrar nele ilustra=C3=A7=C3=B5es admir=C3=A1veis de = verdades gerais se o tivermos sob controle. Temos que ganhar = dist=C3=A2ncia dele, a fim de observ=C3=A1-lo fixamente, por inteiro. Mas Nabokov cuida que, justo quando pens=C3=A1vamos ter recuado = alguns passos e encontrado o lugar correto para observar o livro em = perspectiva, tenhamos a sensa=C3=A7=C3=A3o fantasmag=C3=B3rica de que = =C3=A9 o livro que est=C3=A1 olhando para n=C3=B3s de uma dist=C3=A2ncia = consider=C3=A1vel e =C3=A0s risadelas. O embara=C3=A7o resultante = costuma se manifestar na forma de exaspera=C3=A7=C3=A3o renovada diante = do ego=C3=ADsmo de Nabokov, de seu gosto infantil pelos truques e pela = novidade tola. O que vale para "Lolita" vale para "Fogo P=C3=A1lido". Quando se = l=C3=AA o livro pela primeira vez, n=C3=B3s nos absorvemos numa boa = hist=C3=B3ria, narrada por um senhor meio esquisito, mas encantador, e = isso antes mesmo de chegar ao fim da introdu=C3=A7=C3=A3o. O que vem em = seguida -os 999 versos rimados de "Fogo P=C3=A1lido"- soa como uma = interrup=C3=A7=C3=A3o ligeiramente infeliz. Talvez n=C3=A3o seja justo = for=C3=A7ar um amante de boas hist=C3=B3rias a atravessar laboriosamente = um poema longo antes de retornar =C3=A0 trama. Mas vamos l=C3=A1, = dizemos ponderadamente, o poema n=C3=A3o =C3=A9 t=C3=A3o longo assim. = Depois de nos perturbarmos um pouco com a hist=C3=B3ria do suic=C3=ADdio = de Hazel Shade no segundo canto e de nos entediarmos um pouquinho com as = reflex=C3=B5es sobre a morte no terceiro canto e sobre o processo = criativo no quarto canto, tornamos =C3=A0 hist=C3=B3ria que o poema = interrompeu. Voltamos =C3=A0 companhia de Kinbote, intrigante, mas = d=C3=BAbia tamb=C3=A9m, e come=C3=A7amos a nos divertir com seu jeito de = se intrometer alegremente no que, em teoria, =C3=A9 um coment=C3=A1rio = ao poema que j=C3=A1 come=C3=A7amos a esquecer. Cinq=C3=BCenta p=C3=A1ginas depois, esquecemos tudo a respeito de = John Francis Shade (1898-1959, a introdu=C3=A7=C3=A3o j=C3=A1 dizia, = vale lembrar, que ele morrera logo depois de escrever "Fogo = P=C3=A1lido", pobre homem!). Pois agora estamos imersos nas aventuras de = uma figura bem mais interessante: Charles Xavier Vseslav, =C3=BAltimo = rei de Zembla (reinante entre 1936-1958). Se o =C3=BAnico grande = acontecimento na vida de Shade parece ter sido o infeliz suic=C3=ADdio = de sua jovem filha, a hist=C3=B3ria da juventude de Xavier =C3=A9 = repleta de incidentes. Mais ainda, ela possui aquele profundo interesse = humano que sempre se prende =C3=A0s hist=C3=B3rias da realeza, para = n=C3=A3o falar daquele fremitozinho extra que sentimos ao ler sobre a = c=C3=B3pula de jovens faunos. Cem p=C3=A1ginas mais tarde, estamos convencidos de que Charles = Kinbote e Charles Xavier s=C3=A3o a mesma pessoa. Isso nos proporciona = n=C3=A3o somente a satisfa=C3=A7=C3=A3o de saber que nosso interesse por = Kinbote foi recompensado, mas ainda a sensa=C3=A7=C3=A3o basbaque de que = a realeza achou por bem nos tratar como confidentes. Um ex-rei, triste, = mas bonito e bem lido, confia em n=C3=B3s a ponto de nos contar coisas = que pouqu=C3=ADssimas pessoas poderiam adivinhar. Shade aparece de vez = em quando, e suspeitamos de que ele tamb=C3=A9m pode ter sido = clarividente o bastante para perceber, como n=C3=B3s, quem Kinbote de = fato =C3=A9. Mas as apari=C3=A7=C3=B5es de Shade s=C3=A3o sempre = sucedidas e obliteradas pela revela=C3=A7=C3=A3o de algum fato novo e = surpreendente sobre nosso not=C3=A1vel anfitri=C3=A3o e comentador. = =C3=89 t=C3=A3o-somente nas p=C3=A1ginas finais do romance que somos = novamente for=C3=A7ados a pensar seriamente em Shade. Pois agora algo de = fato acontece: ele =C3=A9 morto. Shade retorna =C3=A0 hist=C3=B3ria de = Kinbote no mesmo momento em que Gradus, o regicida enviado pelo governo = revolucion=C3=A1rio de Zembla, est=C3=A1 a ponto de cumprir sua = miss=C3=A3o. T=C3=A3o logo Shade morre, o romance come=C3=A7a a cair em = peda=C3=A7os. Nossa aten=C3=A7=C3=A3o =C3=A9 subitamente puxada de volta = ao poema que esquecemos por tanto tempo. Pois Gradus surge no momento em = que Shade finalmente entrega a Kinbote o manuscrito de "Fogo = P=C3=A1lido". Enquanto Shade, ca=C3=ADdo no ch=C3=A3o, se esvai em = sangue, Kinbote corre para dentro da casa, a fim de buscar um copo = d'=C3=A1gua para o amigo moribundo e esconder o manuscrito sob uma pilha = de galochas de ninfetas dentro de um arm=C3=A1rio. Ap=C3=B3s alguma = demora desagrad=C3=A1vel (Kinbote tem que gastar algum tempo com a = vi=C3=BAva de Shade, a pol=C3=ADcia e coisas do g=C3=AAnero), ele pode = enfim recuperar o manuscrito. Ele o l=C3=AA rosnando, "como um jovem e = furioso herdeiro que percorre o testamento deixado por um velho = impostor", dando-se conta de que o poema n=C3=A3o trata dele mesmo, mas = de seu autor. N=C3=B3s, leitores, a essa altura completamente emaranhados = =C3=A0s esperan=C3=A7as e aos temores de Kinbote, nos surpreendemos a = compartilhar a decep=C3=A7=C3=A3o avassaladora de Kinbote, muito embora = n=C3=B3s mesmos j=C3=A1 tenhamos lido o poema e saibamos muito bem que = tratava dos Shades, e n=C3=A3o da derrocada da monarquia em Zembla. = N=C3=B3s tamb=C3=A9m nos perguntamos como Shade p=C3=B4de ser t=C3=A3o = insens=C3=ADvel e cruel a ponto de n=C3=A3o fazer nenhum uso do material = maravilhoso que seu amigo Kinbote lhe oferecia constantemente. = Entretanto as d=C3=BAvidas que n=C3=B3s, monarquistas leais, temos = deixado impacientemente de lado ao longo de 200 p=C3=A1ginas = come=C3=A7am a refluir. Talvez (ali=C3=A1s, muito provavelmente) = n=C3=A3o sejamos os confidentes de um rei, mas as v=C3=ADtimas de um = lun=C3=A1tico. Zembla, recordamos, n=C3=A3o figura em nenhum mapa que se = conhe=C3=A7a. Os castelos ao p=C3=B4r-do-sol come=C3=A7am a ruir diante = de nossos olhos. Toda a hist=C3=B3ria mirabolante talvez n=C3=A3o tenha = sido mais que a inven=C3=A7=C3=A3o de um acad=C3=AAmico exilado e = enlouquecido, um monstro de ego=C3=ADsmo que nos arrebatou com suas = fantasias absurdas. A =C3=BAnica pessoa sadia, mais ainda, a =C3=BAnica = pessoa decente =C3=A0 vista (seja no romance, seja na sala onde o lemos) = vem a ser o sujeito que esquecemos h=C3=A1 tempos, o homem que escreveu = o poema cujo acontecimento central n=C3=B3s preferimos n=C3=A3o lembrar: = o doce e trapalh=C3=A3o John Shade, com seus valores familiares fora de = moda. Enquanto vemos ruir os castelos, lembramos que torres envoltas em = nuvens s=C3=A3o sujeitas a dissolu=C3=A7=C3=A3o. E, enquanto procuramos = desesperadamente por Nabokov, para lhe pedir que nos leve a seu = pr=C3=B3prio ponto de vista, que nos mostre de onde observar o romance = com clareza, n=C3=B3s nos damos conta de que estamos precisamente onde = ele queria que estiv=C3=A9ssemos: ouvindo Kinbote dizer: "Muito bem, = minha gente, acho que muitos dos presentes neste belo sal=C3=A3o = t=C3=AAm tanta fome e tanta sede quanto eu, e acho melhor, meus amigos, = parar por aqui". =C3=89 como se Pr=C3=B3spero, ap=C3=B3s explicar que em = breve mandar=C3=A1 seu livro para o fundo do mar, viesse at=C3=A9 a = beira do palco para anunciar que haver=C3=A1 frutas e bebidas =C3=A0 = venda no p=C3=A1tio logo depois do espet=C3=A1culo, que os assinantes = ser=C3=A3o bem-vindos nos camarins, mas que, infelizmente, o autor da = pe=C3=A7a, que adoraria estar ali para encontrar seus muitos amigos, = est=C3=A1 fora da cidade. Assim como =C3=A9 preciso muito esfor=C3=A7o para lembrar que = Lolita solu=C3=A7ava no meio da noite, =C3=A9 tamb=C3=A9m preciso muito = esfor=C3=A7o para lembrar de Hazel Shade, a mo=C3=A7a acima do peso cujo = corpo foi retirado do lago Omega no segundo canto. Mas o lago =C3=A9 o = tra=C3=A7o topogr=C3=A1fico central de "Fogo P=C3=A1lido". A busca de um = ponto de vista acabar=C3=A1 por conduzir o leitor =C3=A0s margens = pantanosas do lago e ao centro exato do poema: "Da margem destacou-se um = indistinto/ Vulto que o p=C3=A2ntano, voraz, sorveu".=20 -------------------------------------------------------------------- Os "truques" de Nabokov eram os transbordamentos ebulientes = de uma mente bem mais =C3=A1gil do que a nossa; ele queria aprimorar a = si e a seus leitores=20 -------------------------------------------------------------------- =20 Aos poucos percebemos que a morte mais importante em "Fogo = P=C3=A1lido" =C3=A9 a mesma que importa no poema "Fogo P=C3=A1lido": = n=C3=A3o a de Shade, mas a de sua filha. Shade tinha 61 anos quando foi = morto por acidente (por um regicida incompetente, se dermos cr=C3=A9dito = a Kinbote, ou, mais provavelmente, por um lun=C3=A1tico =C3=A0 solta, = Jack Grey, que confundiu Shade com o juiz que o recolheu a um asilo). = Mas sua filha Hazel tinha apenas 23 anos quando sua infelicidade = tornou-se insuport=C3=A1vel, gra=C3=A7as =C3=A0 crueldade de um = estudante universit=C3=A1rio, Pete Dean, desapontado com a sensaboria de = um encontro =C3=A0s cegas. Ficamos sabendo muita coisa sobre o = autocastrado Gradus, mas pouqu=C3=ADssimo sobre Pete. =C3=89 = prov=C3=A1vel que n=C3=A3o fosse nenhum monstro, quem sabe at=C3=A9 um = rapaz decente, um tanto ego=C3=ADsta e afoito -algu=C3=A9m muito = parecido conosco. N=C3=B3s mesmos talvez tenhamos sido um pouco = ego=C3=ADstas e afoitos ao esquecer a fam=C3=ADlia Shade t=C3=A3o = rapidamente, mas n=C3=A3o foi correto da parte de Nabokov embrulhar-nos = tanto tempo com aqueles mo=C3=A7os floridos, aqueles paladinos da Rosa = Negra, toda aquela conversa fabulosa sobre Zembla.=20 Crueldades=20 Seja como for, os Shade n=C3=A3o s=C3=A3o muito mais reais que = Zembla. Afinal de contas, Hazel =C3=A9 um personagem de = fic=C3=A7=C3=A3o. Por que a crueldade de Pete Dean deveria ser mais = dolorida do que a crueldade de Charles, o Bem-Amado, para com a = p=C3=A1lida rainha Disa? Pois, assim como Disa e, de resto, o = pr=C3=B3prio Charles Xavier, n=C3=A3o eram mais que cria=C3=A7=C3=B5es = ficcionais do ensandecido professor Kinbote, do mesmo modo Hazel = n=C3=A3o =C3=A9 mais que a cria=C3=A7=C3=A3o de um professor exilado de = literatura russa e inglesa, sujeito esquisito, dado a truques e = fantasias, de nome Nabokov, um professor cuja semelhan=C3=A7a com = Kinbote =C3=A9 patente no final do livro. Sa=C3=ADmos ofuscados dali, = fugindo ao som do pano de fundo sendo rasgado =C3=A0s nossas costas, = tentando nos livrar da coisa toda como de um amontoado de truques = impingidos a n=C3=B3s por um egoman=C3=ADaco exilado. Foi o que a = maioria dos resenhadores de "Fogo P=C3=A1lido" tentou fazer. Mas tal = estrat=C3=A9gia n=C3=A3o funciona. Pois agora o mundo real recebeu um = pequeno golpe, bem ali onde nos esquecemos de Hazel. Mas esse = esquecimento n=C3=A3o foi uma fantasia. Foi t=C3=A3o real quanto = n=C3=B3s. O golpe foi desferido pela imagina=C3=A7=C3=A3o de Nabokov, = mas s=C3=B3 foi poss=C3=ADvel com nossa participa=C3=A7=C3=A3o = entusi=C3=A1stica. Quando lemos pela primeira vez "Lolita" ou "Fogo = P=C3=A1lido" ou "Pnin", podemos rir do come=C3=A7o ao fim de cada uma = dessas hist=C3=B3rias prodigiosas. Mas sa=C3=ADmos das p=C3=A1ginas = finais de cada um desses romances co=C3=A7ando a cabe=C3=A7a, = perguntando-nos se estamos bem, se gostamos de n=C3=B3s mesmos. Nesses = tr=C3=AAs romances, Nabokov disp=C3=B5e as coisas de tal modo que = fa=C3=A7amos uma alian=C3=A7a com um determinado personagem (Humbert, = Kinbote ou qualquer um dos colegas desdenhosos de Pnin) contra = algu=C3=A9m que esse mesmo personagem trata cruelmente. Ele tamb=C3=A9m = cuida que pensemos estar ombro a ombro com o pr=C3=B3prio Nabokov, com = esse escritor t=C3=A3o brilhante, que nos est=C3=A1 proporcionando = t=C3=A3o bons momentos, cujo engenho nos =C3=A9 fonte de tanto deleite = est=C3=A9tico. Mas, em todos esses casos, percebemos no final do livro = que seria melhor n=C3=A3o nutrir sentimentos t=C3=A3o calorosos por esse = personagem com quem estivemos perambulando e cuja companhia parecia = t=C3=A3o agrad=C3=A1vel. E isso nos faz pensar se nossa = rela=C3=A7=C3=A3o com Nabokov =C3=A9 t=C3=A3o transparente quanto = pens=C3=A1vamos. Come=C3=A7amos a ter a terr=C3=ADvel sensa=C3=A7=C3=A3o = de que talvez Nabokov n=C3=A3o goste tanto assim de n=C3=B3s assim como = n=C3=A3o gostava dos personagens a quem nos apresentou. Mas valeria = ter-nos identificado a outra gente -Shade, Lolita, Pnin- antes que fosse = tarde demais.=20 Palha=C3=A7o an=C3=B4nimo=20 Nosso arrependimento s=C3=B3 faz crescer quando ouvimos Nabokov = dizer a um entrevistador: "Faz pouco tempo, um palha=C3=A7o = an=C3=B4nimo, escrevendo sobre "Fogo P=C3=A1lido" numa revista de Nova = York, tomou por minhas as declara=C3=A7=C3=B5es do comentador que = inventei no livro...". Talvez n=C3=A3o nos tenhamos sa=C3=ADdo melhor = que esse palha=C3=A7o an=C3=B4nimo? Ser=C3=A1 isso o que Nabokov queria = que sent=C3=ADssemos? Sendo assim, ele =C3=A9 de fato t=C3=A3o = insidiosamente cruel, t=C3=A3o ego=C3=ADsta e indiferente quanto seus = personagens mais sedutores, n=C3=A3o? N=C3=A3o. Nabokov =C3=A9 um autor = t=C3=A3o gentil e generoso quanto foi na vida real. Muito embora = n=C3=A3o tenha a menor vontade de se reunir a n=C3=B3s para comes e = bebes depois de tirar sua maquiagem de Pr=C3=B3spero, ele tampouco = est=C3=A1 interessado em nos passar uma rasteira. Ele sabe muito bem = que, daqui a alguns dias, estaremos mais felizes e seremos mais = s=C3=A1bios por termos sofrido um pequeno golpe. Massageando esse golpe = com mais tranq=C3=BCilidade, perceberemos que, como ele e como todos = mais, n=C3=B3s tamb=C3=A9m temos nosso lado Shade e nosso lado Kinbote. = O lado que sente compaix=C3=A3o por Hazel e Lolita e o lado que as = esquece, o lado que sente pena das dificuldades de Pnin com a = l=C3=ADngua inglesa e o lado que as acha divertidas =C3=A0s pampas. Quem = tiver esses dois lados em si mesmo pode muito bem se tornar mais gentil = e generoso ao reconhecer sua pr=C3=B3pria duplicidade. Quanto mais vezes = lemos "Fogo P=C3=A1lido" e quanto mais vezes o lemos no contexto dos = demais livros de Nabokov, mais claramente percebemos que cada um desses = lados s=C3=B3 emerge =C3=A0 luz do outro: Shade n=C3=A3o seria = plenamente vis=C3=ADvel sem Kinbote, nem Kinbote sem Shade. No final da = entrevista citada acima, o jornalista comenta que "=C3=A0s vezes me = parece que nos seus romances, em "Riso no Escuro", por exemplo , h=C3=A1 = um tra=C3=A7o de perversidade que chega =C3=A0s raias da crueldade". Ele = respondeu: "N=C3=A3o sei. Talvez. =C3=89 claro que alguns de meus = personagens s=C3=A3o bem bestiais, mas n=C3=A3o me importo muito, = est=C3=A3o fora de meu =C3=ADntimo, feito monstros arrependidos na = fachada de uma catedral -dem=C3=B4nios colocados ali apenas para mostrar = que tomaram uma sova. Na verdade, eu sou um senhor af=C3=A1vel que = abomina a crueldade".=20 Beleza e compaix=C3=A3o=20 Nabokov tornou-se mais af=C3=A1vel =C3=A0 medida que envelhecia, = escrevia mais romances e dava sovas em mais e mais dem=C3=B4nios. = Escreveu "Fogo P=C3=A1lido" quando tinha a idade de Shade, 61, e = conferiu a Shade uma esp=C3=A9cie de generosidade que n=C3=A3o soubera = dar, 25 anos antes, a Fi=C3=B3dor Godunov-Tcherdintsev (em "O Dom"). = Quando Kinbote pede uma senha a Shade, este lhe diz "compaix=C3=A3o". = Nesse caso, podemos ter certeza de que Shade fala por seu criador, que, = nas suas "Confer=C3=AAncias de Literatura", escrevera: "Beleza e = compaix=C3=A3o =C3=A9 o mais perto que chegaremos de uma = defini=C3=A7=C3=A3o da arte". =C3=89 tentador afirmar que Kinbote = dava-se bem com a beleza, e Shade, com a compaix=C3=A3o, e ainda que = vincular a obra dos dois homens produziu o que McCarthy declarou ser = "uma das grandes obras de arte do s=C3=A9culo 20". Mas isso seria = simplista demais. Shade sa=C3=ADa-se muito bem com a beleza: h=C3=A1 = versos maravilhosos espalhados em "Fogo P=C3=A1lido". Kinbote = comiserava-se ferozmente por Disa, ainda que apenas em seus sonhos, e = estava certo ao dizer que "Hazel Shade parecia-se comigo sob certos = aspectos" (e n=C3=A3o apenas pela tend=C3=AAncia suicida). As rela=C3=A7=C3=B5es entre Kinbote e Shade e entre suas = contrapartidas dentro de n=C3=B3s n=C3=A3o s=C3=A3o de mera = oposi=C3=A7=C3=A3o. S=C3=A3o dial=C3=A9ticas, t=C3=A3o dial=C3=A9ticas = quanto as rela=C3=A7=C3=B5es entre as nossas primeira, segunda e = terceira leituras de "Fogo P=C3=A1lido". Nabokov n=C3=A3o estava = interessado em imitar a realidade; queria transform=C3=A1-la, = transformando a si mesmo e a seus leitores em pessoas capazes de sentir = e fazer coisas que n=C3=A3o saberiam sentir e fazer antes. Tamb=C3=A9m = n=C3=A3o estava interessado em nos trapacear. Os seus "truques" eram os = transbordamentos ebulientes de uma mente bem mais =C3=A1gil e bem mais = armada do que a nossa. Nabokov n=C3=A3o tinha interesse ou necessidade = de admira=C3=A7=C3=A3o. Queria aprimorar a si e a seus leitores, = aumentando a intensidade das trocas dial=C3=A9ticas entre os dois lados = da sua e da nossa natureza: o lado que se exalta diante da beleza e das = fantasias que a beleza gera e o lado que se dilacera diante do = sofrimento dos indefesos. Aqueles que julgam a fantasia irrelevante para o senso moral = n=C3=A3o poder=C3=A3o aceitar a defini=C3=A7=C3=A3o nabokoviana de arte. = Talvez cheguem a duvidar de que Nabokov acreditasse em sua pr=C3=B3pria = defini=C3=A7=C3=A3o, pois dificilmente conseguir=C3=A3o v=C3=AA-lo como = mais do que um ego=C3=ADsta enamorado de seu pr=C3=B3prio brilho = estil=C3=ADstico. Pensar=C3=A3o ainda que, a fim de inspirar = compaix=C3=A3o, n=C3=A3o precisamos nem queremos estilo, engenho e = perfei=C3=A7=C3=A3o formal: o est=C3=A9tico s=C3=B3 pode nos distanciar = do moral. Dir=C3=A3o ainda que precisamos ser t=C3=A3o realistas quanto = for poss=C3=ADvel; n=C3=A3o queremos fazer press=C3=A3o contra a = realidade, mas sim respeit=C3=A1-la, na forma que a moralidade prescreve = que respeitemos os sentimentos alheios -devemos observar as pessoas tais = como elas s=C3=A3o, e n=C3=A3o imagin=C3=A1-las. Mas Nabokov recorda-nos de que s=C3=B3 podemos respeitar o que = somos capazes de notar, e muitas vezes =C3=A9 dif=C3=ADcil notar o = sofrimento alheio. E ele ainda aponta a raz=C3=A3o dessa dificuldade: = passamos boa parte do tempo inventando pessoas, em vez de not=C3=A1-las, = metamorfoseando pessoas reais em personagens de hist=C3=B3rias que = contamos a n=C3=B3s mesmos sobre n=C3=B3s mesmos, sobre nossa beleza e = singularidade. Quanto mais dotes po=C3=A9ticos tivermos, melhores = fabuladores seremos e menor ser=C3=A1 nossa capacidade de notar o = sofrimento dos outros. No caso extremo de pessoas fabulosamente dotadas e capazes de = jamais deixar que o sofrimento alheio se intrometa nas hist=C3=B3rias = que contam, tais hist=C3=B3rias podem se tornar verdadeiramente = prodigiosas. Ser=C3=A3o hist=C3=B3rias =C3=A0 fei=C3=A7=C3=A3o da que = Kinbote conta sobre Charles Xavier ou da que Humbert conta sobre aqueles = raros esp=C3=ADritos capazes de detectar uma ninfeta -"dem=C3=B4nio = imortal em forma de crian=C3=A7a"- =C3=A0 primeira vista; hist=C3=B3rias = que tornam imposs=C3=ADvel ao leitor enredado recordar que John Shade = tem outros assuntos para seus poemas al=C3=A9m de Zembla ou que Lolita = =C3=A9 uma crian=C3=A7a. Nabokov era o esp=C3=ADrito mais singular que se possa imaginar: = um poeta de dons fabulosos, cuja capacidade de notar o sofrimento alheio = crescia =C3=A0 medida que fazia uso de seus dons. Ele percebeu que a = melhor forma de fazer seus leitores notarem o sofrimento alheio = consistia em exibi-lo por um momento, depois for=C3=A7=C3=A1-los a = esquecer tudo por um bom tempo, para enfim traz=C3=AA-lo novamente = =C3=A0 tona justo quando o leitor estava perfeitamente enredado pela = pura beleza da fantasia, pela pura alegria da prosa. Nabokov sabia muito = bem que a arte pode ser uma distra=C3=A7=C3=A3o dos imperativos da = moralidade, mas tamb=C3=A9m sabia que ela pode ser, ao menos para alguns = de n=C3=B3s, o melhor meio de aprimoramento moral. Pois, mesmo que a beleza possa afastar a compaix=C3=A3o, ela = tamb=C3=A9m pode suscitar uma compaix=C3=A3o de intensidade previamente = inimagin=C3=A1vel: quanto mais bela a hist=C3=B3ria que nos fez = esquecer, maior ser=C3=A1 a compaix=C3=A3o que por fim recordamos. A = imagem de um garoto que tenta salvar o irm=C3=A3o das pedras que os = demais colegas de escola lhe atiram ser=C3=A1 sempre uma imagem familiar = em muitos pa=C3=ADses, mas menos freq=C3=BCente naqueles onde se = l=C3=AAem romances.=20 -------------------------------------------------------------------------= - Richard Rorty =C3=A9 fil=C3=B3sofo e professor na Universidade = Stanford (EUA). =C3=89 autor de "Para Realizar a Am=C3=A9rica" (DP&A) e = "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumar=C3=A1). Uma vers=C3=A3o = ampliada deste artigo foi publicada como introdu=C3=A7=C3=A3o =C3=A0 = edi=C3=A7=C3=A3o da Everyman's Library (EUA) de "Fogo P=C3=A1lido" . Tradu=C3=A7=C3=A3o de Samuel Titan Jr.=20 -------------------------------------------------------------------------= - Fogo P=C3=A1lido 304 p=C3=A1gs., R$ 42,50 de Vladimir Nabokov. Trad. Jorio Dauster = e S. Duarte. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, = CEP 04532-002, S=C3=A3o Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500). =20 Texto Anterior | Pr=C3=B3ximo Texto | =C3=8Dndice=20 A NINFETA FEIA=20 ENSA=C3=8DSTA DISCUTE SE VLADIMIR NABOKOV TERIA SE APROPRIADO DE = CONTO DE UM AUTOR QUASE DESCONHECIDO PARA COMPOR "LOLITA", UM DOS = PRINCIPAIS ROMANCES DO S=C3=89CULO 20=20 por Michael Maar Voc=C3=AA j=C3=A1 n=C3=A3o ouviu isso antes? O narrador na = primeira pessoa, um homem culto de meia-idade, relembra a hist=C3=B3ria = de um "amour fou" passado. Tudo come=C3=A7a quando, durante viagem ao = exterior, ele aluga um quarto em uma casa de fam=C3=ADlia. No instante = em que v=C3=AA a filha da fam=C3=ADlia, se apaixona perdidamente. Ela = =C3=A9 uma pr=C3=A9-adolescente cujos encantos o escravizam = imediatamente. Ignorando sua idade terna, ele se torna =C3=ADntimo dela. = No final ela morre, e o narrador, marcado para sempre pela garota, = permanece s=C3=B3. O nome da menina d=C3=A1 t=C3=ADtulo =C3=A0 = hist=C3=B3ria: "Lolita". Conhecemos a menina e sua hist=C3=B3ria, conhecemos o t=C3=ADtulo. = Pensamos tamb=C3=A9m conhecer o autor, mas nos enganamos. Seu nome era = Heinz von Lichberg. "Lolita", de Von Lichberg, =C3=A9 um conto de 18 p=C3=A1ginas = publicado em 1916, 40 anos antes de seu hom=C3=B4nimo famoso. A = hist=C3=B3ria =C3=A9 obra de um autor alem=C3=A3o de 25 anos que = praticamente n=C3=A3o deixou rastro nos arquivos liter=C3=A1rios. Mesmo = em termos bibliogr=C3=A1ficos, ela =C3=A9 bem camuflada: "Lolita" = est=C3=A1 escondida dentro de um volume intitulado "The Accursed = Gioconda" [A Gioconda Maldita]. =C3=89 o nono da colet=C3=A2nea de 15 = contos. Ainda em 1975 o livro podia ser comprado em um sebo de Berlim. = =C3=89 prov=C3=A1vel que, nos anos 1920 e 1930, fosse facilmente = encontr=C3=A1vel. Hoje, por=C3=A9m, s=C3=B3 =C3=A9 poss=C3=ADvel = v=C3=AA-lo em algumas poucas bibliotecas universit=C3=A1rias. Quem foi o criador da primeira "Lolita"? O autor n=C3=A3o =C3=A9 = encontrado em nenhuma enciclop=C3=A9dia de literatura. A =C3=BAnica obra = de refer=C3=AAncia biogr=C3=A1fica que o menciona nem sequer acerta as = datas de sua vida. =C3=89 perdo=C3=A1vel, j=C3=A1 que Lichberg era um = pseud=C3=B4nimo liter=C3=A1rio. O verdadeiro nome do autor era Heinz von = Eschwege. Descendente de uma fam=C3=ADlia antiga de Hesse, Von Eschwege = nasceu em 7 de setembro de 1890 em Marburgo, filho de um tenente-coronel = da infantaria. Aos 7 anos ele perdeu sua m=C3=A3e. Durante a Primeira = Guerra Mundial, foi tenente da Artilharia Naval. Nesse per=C3=ADodo, al=C3=A9m de "A Gioconda Maldita" e de uma = antologia de poesia alem=C3=A3, ele publicou contribui=C3=A7=C3=B5es nos = peri=C3=B3dicos "Jugend" e "Simplicissimus". Depois da guerra -durante a = qual tinha sido lan=C3=A7ado um volume de seus pr=C3=B3prios poemas- ele = trabalhou em Berlim, como jornalista para os jornais do Scherl-Verlag, o = n=C3=BAcleo do posterior imp=C3=A9rio Hugenberg. Suas cartas traziam o = cabe=C3=A7alho Eschwege-Lichberg, e ele ainda se assinava Eschwege, mas = publicava seus escritos sob o nome de Heinz von Lichberg. Ao ler o conto hoje e compar=C3=A1-lo com o romance, somos = dominados por uma leve sensa=C3=A7=C3=A3o de irrealidade e de = d=C3=A9j=C3=A0 vu, como se tiv=C3=A9ssemos entrado em uma das = hist=C3=B3rias labir=C3=ADnticas de Borges. A parte principal do conto, = que possui pouco valor art=C3=ADstico, apresenta uma viagem =C3=A0 = Espanha. O narrador an=C3=B4nimo, que escreve na primeira pessoa, parte = do sul da Alemanha, depois de se despedir de dois irm=C3=A3os idosos, = propriet=C3=A1rios de uma taverna que ele frequenta. Ele passa por = Paris, chega a Madri e, depois, Alicante. Ali ele se hospeda em uma = pens=C3=A3o =C3=A0 beira-mar. Seus planos n=C3=A3o v=C3=A3o al=C3=A9m de = f=C3=A9rias tranq=C3=BCilas. Mas ent=C3=A3o algo acontece: ap=C3=B3s um = breve adiamento, um vislumbre primeiro e fatal que n=C3=A3o pode deixar = de nos remeter =C3=A0 "Lolita" posterior [Companhia das Letras]. Nesta, = o narrador na primeira pessoa Humbert Humbert faz uma viagem para = encontrar um lugar calmo para trabalhar e que tenha um lago por perto. = Na cidadezinha de Ramsdale ele visita a propriet=C3=A1ria Charlotte = Haze, que ele acha t=C3=A3o pouco atraente quanto sua casa. Decidido, em seu =C3=ADntimo, a partir, ele acompanha a sra. Haze = ao que ela descreve como a "piazza" do estabelecimento, e, de repente = -"sem nenhum aviso pr=C3=A9vio, uma onda azul ergueu bem alto meu = cora=C3=A7=C3=A3o"-, ele v=C3=AA a crian=C3=A7a imortal, o renascimento = de seu primeiro amor de beira-mar: "Era a mesma crian=C3=A7a -os mesmos = ombros fr=C3=A1geis cor de mel, as mesmas costas flex=C3=ADveis, nuas e = sedosas, os mesmos cabelos castanhos". Da mesma maneira, o narrador de Lichberg s=C3=B3 precisa de um = vislumbre para se emocionar, e, da mesma maneira, a beleza da menina = dele tamb=C3=A9m possui o toque sombrio de um mist=C3=A9rio do passado. "A pens=C3=A3o administrada por Severo Acosta era uma casa pequena = e torta com balc=C3=B5es grandes, apertada entre outras casas = semelhantes. O dono da casa, falador e amig=C3=A1vel, me levou at=C3=A9 = um quarto com uma bel=C3=ADssima vista do mar, e n=C3=A3o havia nada = para me impedir de desfrutar uma semana de beleza sem = perturba=C3=A7=C3=B5es. At=C3=A9 o segundo dia, quando vi Lolita, a = filha de Severo. Ela era muito jovem para nossos padr=C3=B5es nortistas, = com sombras sob seus olhos sulistas e cabelo de uma tonalidade incomum = de ruivo dourado. Seu corpo era esbelto e flex=C3=ADvel como o de um = menino; sua voz, profunda e escura." Como Humbert, nosso narrador se = sente imediatamente enfeiti=C3=A7ado e abandona qualquer id=C3=A9ia de = partir. Sua Lolita, tamb=C3=A9m, assim como a posterior Dolores Haze, = =C3=A9 sujeita a sofrer mudan=C3=A7as violentas de estado de =C3=A2nimo. = Assim come=C3=A7a a descri=C3=A7=C3=A3o que Lichberg faz de uma = paix=C3=A3o enigm=C3=A1tica que leva o narrador a abandonar qualquer = id=C3=A9ia de partir. Lolita =C3=A9 sujeita a caprichos e estados de = humor vari=C3=A1veis. Ser=C3=A1 que ela quer algo dele ou n=C3=A3o? = Ser=C3=A1 que esconde segredos em sua alma de crian=C3=A7a? Assim como = no caso do agradavelmente surpreso Humbert Humbert, ao final =C3=A9 = Lolita quem termina por seduzir o narrador, e n=C3=A3o o contr=C3=A1rio. = O autor n=C3=A3o o afirma claramente, mas suas elipses e seus rodeios = n=C3=A3o deixam ao leitor grande margem de d=C3=BAvida. O texto =C3=A9 = ao mesmo tempo t=C3=A3o pouco expl=C3=ADcito e t=C3=A3o pouco = amb=C3=ADguo quanto cabe =C3=A0 =C3=A9poca. Os dias e noites dedicados = por um amante de meia-idade =C3=A0 doce boca de uma linda ninfeta se = tornaram sexualmente indecentes apenas mais tarde, com Nabokov, que = primeiro pensou em publicar seu manuscrito anonimamente e, mais tarde, = escapou da censura por pouco. Apesar disso, a correspond=C3=AAncia entre = as tramas b=C3=A1sicas, a perspectiva da narrativa e a escolha do nome = da protagonista n=C3=A3o deixa de ser not=C3=A1vel. Infelizmente, = por=C3=A9m, como observa Van Veen em "Ada", n=C3=A3o existe lei = l=C3=B3gica que possa nos dizer quando um n=C3=BAmero dado de = coincid=C3=AAncias deixa de ser acidental. Em sua aus=C3=AAncia, = n=C3=A3o existe maneira de responder -e, =C3=A9 claro, menos ainda de = deixar de lado- a pergunta inevit=C3=A1vel: teria Vladimir Nabokov, = autor da imortal "Lolita", o orgulhoso cisne negro da fic=C3=A7=C3=A3o = moderna, tido conhecimento do patinho feio que foi seu precursor? = Poderia ele -mesmo que apenas inconscientemente, j=C3=A1 que presume-se = que um citar consciente teria sido impens=C3=A1vel- ter estado sob seu = est=C3=ADmulo? Seja como for, Nabokov poderia facilmente ter cruzado o = caminho do autor de "Lolita", o conto. Heinz von Lichberg viveu durante = 15 anos na zona sudoeste de Berlim, praticamente no mesmo bairro de = Nabokov. Quando crian=C3=A7a, Nabokov passou por Berlim v=C3=A1rias = vezes, quando sua fam=C3=ADlia estava a caminho da Fran=C3=A7a. Um ano = depois de a fam=C3=ADlia fugir da R=C3=BAssia, em 1919, seus pais e = irm=C3=A3os se mudaram para o distrito de Grunewald, em Berlim, onde = Vladimir os visitava em suas f=C3=A9rias de Cambridge. Em mar=C3=A7o de = 1922 seu pai foi assassinado por um monarquista russo no Teatro da = Filarm=C3=B4nica de Berlim. Naquele ver=C3=A3o, Vladimir se mudou da = Inglaterra para Berlim e -algo que n=C3=A3o poderia ter previsto- = permaneceu ali at=C3=A9 1937. Naqueles 15 anos em Berlim ele ficou noivo = de uma alem=C3=A3 e se separou dela; conheceu Vera Slonim, casou-se com = ela e tornou-se pai de um filho e, al=C3=A9m disso, tornou-se Sirin, o = escritor russo de maior destaque da gera=C3=A7=C3=A3o jovem da = =C3=A9poca. Em Berlim ele escreveu nada menos que nove romances russos, = e tinha quase conclu=C3=ADdo o d=C3=A9cimo e melhor deles, "The Gift", = quando deu in=C3=ADcio a sua conquista da literatura americana com "The = Real Life of Sebastian Knight". Nada disso nos diz se Sirin-Nabokov pode = ter lido a "Lolita" alem=C3=A3. No que diz respeito a seus conhecimentos = de assuntos alem=C3=A3es, Nabokov sempre se manteve reticente, quando = n=C3=A3o o negava simplesmente. Ele deixava subentendido que, = isolando-se dentro da comunidade de exilados russos para evitar perder = sua l=C3=ADngua-m=C3=A3e, ele quase n=C3=A3o falava o alem=C3=A3o e = n=C3=A3o lia livros alem=C3=A3es. De fato, Nabokov nunca chegou perto de = dominar o alem=C3=A3o como fazia com o franc=C3=AAs. Mas n=C3=A3o estava = mentindo quando, no pedido que fez para obter uma bolsa de estudos = Guggenheim, em 1947, afirmou ter "conhecimento razo=C3=A1vel do = alem=C3=A3o". De qualquer maneira, seria inimagin=C3=A1vel que um = g=C3=AAnio poliglota como ele pudesse viver em um pa=C3=ADs por tanto = tempo sem alcan=C3=A7ar pelo menos um comando passivo de sua = l=C3=ADngua. E sua antipatia posterior -e eminentemente = compreens=C3=ADvel- pelos alem=C3=A3es n=C3=A3o impediu que seu = "conhecimento razo=C3=A1vel" da l=C3=ADngua deles se estendesse a suas = letras. Seu coment=C3=A1rio sobre "Eug=C3=AAnio Oni=C3=A9guin", de = Puchkin, por si s=C3=B3 revela uma erudi=C3=A7=C3=A3o especialista que = nem todo germanista seria capaz de demonstrar. Nabokov n=C3=A3o apenas = tinha familiaridade com os rom=C3=A2nticos e cl=C3=A1ssicos alem=C3=A3es = como sua obra =C3=A9 pontilhada de alus=C3=B5es =C3=A0 literatura = alem=C3=A3.=20 A c=C3=A9lula original=20 Ele valorizava ao extremo Goethe e Hofmannsthal, respeitava Kafka = e desprezava Thomas Mann (cujo "A Montanha M=C3=A1gica" estudou com a = ajuda de um dicion=C3=A1rio). Ele traduziu para o russo v=C3=A1rios = poemas de Heine e a "dedicat=C3=B3ria" do "Fausto", de Goethe. Existem = indicativos de que tenha lido Schopenhauer no original. Materiais menos = corriqueiros tamb=C3=A9m entravam em seu campo de vis=C3=A3o: o material = de base de seu romance "Despair" saiu de jornais alem=C3=A3es, e em um = de seus contos ele lan=C3=A7ou uma farpa contra "Bruder und Schwester", = de Leonhard Frank, =C3=A0s vezes visto como a fonte de "Ada". Algu=C3=A9m que tivesse conhecimento de Leonhard Frank com certeza = poderia ter topado com Heinz von Lichberg. N=C3=A3o como romancista, mas = como jornalista do "Berliner Tages-Anzeiger", Lichberg estava = permanentemente presente durante os 15 anos em que Nabokov viveu em = Berlim. No entanto, supondo -digamos, gra=C3=A7as a uma dessas = coincid=C3=AAncias mais freq=C3=BCentes na vida do que devem ser em = qualquer romance- que a cole=C3=A7=C3=A3o de "grotescos" do autor = alem=C3=A3o tenha ca=C3=ADdo nas m=C3=A3os do escritor russo, teria = Nabokov se interessado pelo tema de "Lolita" j=C3=A1 naquele momento de = sua vida? Sim, com certeza. Vinte anos antes de concluir seu pr=C3=B3prio = romance sobre o tema, ele j=C3=A1 inclu=C3=ADra um esbo=C3=A7o dele na = boca de um personagem secund=C3=A1rio. "Ah, se eu tivesse um ou dois = instantes de tempo", suspira o senhorio do protagonista em "The Gift", = "que romance eu seria capaz de redigir!". "Imagine algo assim: um sujeito velho -mas ainda no vigor dos = anos, fogoso, sedento de felicidade- conhece uma vi=C3=BAva, e ela tem = uma filha, ainda uma menininha -voc=C3=AA sabe o que quero dizer-, em = quem nada =C3=A9 formado ainda, mas que possui um jeito de andar que = deixa voc=C3=AA louco, fora de si. Uma garota mi=C3=BAda, esbelta, muito = loira, p=C3=A1lida, com sombras azuis sob os olhos -e, =C3=A9 claro, ela = nem sequer olha para o velho safado. O que fazer? Bem, sem perder muito = tempo pensando, ele se casa com a vi=C3=BAva. OK. Eles v=C3=A3o viver = juntos, os tr=C3=AAs. Assim se pode continuar por tempo indefinido -a = tenta=C3=A7=C3=A3o, o tormento eterno, a =C3=A2nsia, as esperan=C3=A7as = loucas." E assim Nabokov de fato continuou, escrevendo, cinco anos mais = tarde, em Paris, a novela "The Enchanter", em que a c=C3=A9lula original = de "Lolita" j=C3=A1 forma um embri=C3=A3o completo. Dez anos depois ele come=C3=A7ou a compor o romance, que, apesar = das tenta=C3=A7=C3=B5es do incinerador, concluiu vitoriosamente em = Ithaca, na primavera de 1954. =C3=89 interessante, por=C3=A9m, que Lolita, embora surja t=C3=A3o = precocemente como figura e como tema, como nome surja apenas bem mais = tarde. Nabokov disse ao primeiro comentarista de "Lolita", Alfred Appel = Jr., que originalmente tencionou chamar sua hero=C3=ADna de = Virg=C3=ADnia e intitular o livro "Ginny". No manuscrito, ela teve = durante muito tempo o nome Juanita Dark. Foi apenas mais tarde que = Nabokov descobriu mil raz=C3=B5es pelas quais o nome Lolita, com o qual = o livro come=C3=A7a e termina, se tornara essencial. De que profundezas = de semiconsci=C3=AAncia ou criptomn=C3=A9sia p=C3=B4de o nome, = atra=C3=ADdo por alguma isca nova, ter ascendido =C3=A0 superf=C3=ADcie? A figura de Lolita, em si, possui tanta semelhan=C3=A7a com sua = precursora hispano-germ=C3=A2nica quanto qualquer menina pode ter com = outra. Elas n=C3=A3o s=C3=A3o g=C3=AAmeas, de maneira alguma, e a = semelhan=C3=A7a entre elas =C3=A9 passageira -t=C3=A3o passageira quanto = o perfume do p=C3=B3-de-arroz espanhol que percorre o primeiro amor de = Humbert. Em ambos os casos Lolita =C3=A9 um diminutivo de Lola, em um = caso de origem espanhola e, no outro, mexicana. Existe tamb=C3=A9m, como = Appel observou, um tra=C3=A7o alem=C3=A3o na Lola de Nabokov. A "femme = fatale" desse nome que aparece no filme "O Anjo Azul" [1930], de = Sternberg, era representada por Marlene Dietrich, a quem Humbert certa = vez compara a m=C3=A3e de Lolita. Ao partir, ele chega a cham=C3=A1-la = de Marlene e, em outra ocasi=C3=A3o, de Lotte, enquanto o sobrenome = dela, Haze, =C3=A9 semelhante ao alem=C3=A3o Hase (coelhinha), como = Nabokov confidenciou a um entrevistador da revista "Playboy" -talvez = apenas para lisonjear a revista. O fato de Humbert certa vez chamar sua = Lolita de "die Kleine" integra o mesmo pano de fundo espantosamente = consistente. Nada disso, entretanto, aponta necessariamente para a = Lolita primeira, de Lichberg. Entre as semelhan=C3=A7as entre a "Kleine" = de 1916 e a de 1954, que certamente existem, uma delas, de qualquer = maneira, diz respeito muito mais =C3=A0 "Ur-Lolita" pr=C3=B3pria de = Nabokov. Lichberg dirige seu foco narrativo desde o in=C3=ADcio para o = corpo esbelto de Lolita, "como o de um menino". Do mesmo modo, a = primeira descri=C3=A7=C3=A3o que Humbert faz de Lolita, quando ela traz = de volta a imagem de sua paix=C3=A3o infantil =C3=A0 beira-mar, canta = seus "quadris pueris". Em v=C3=A1rios momentos Nabokov, sem que isso = d=C3=AA na vista, a veste em roupas de menino; em uma ocasi=C3=A3o = Humbert a chama de "mon petit", em outro ele fala, embevecido, de seus = "lindos joelhos de menino". Humbert n=C3=A3o est=C3=A1 citando Heinz von = Lichberg, mas um jovem chamado Erwin. Pois a pr=C3=A9-hist=C3=B3ria de = Lolita tem origens mais distantes do que "The Gift". A primeira = apari=C3=A7=C3=A3o de uma menina ainda n=C3=A3o formada, cujo andar = =C3=A9 capaz de enlouquecer um homem de idade madura, ocorre no conto "A = Nursery Tale" (1926), de Nabokov. Na companhia de um velho poeta -em = que, anos depois, Nabokov, para sua pr=C3=B3pria surpresa, identificaria = um antecessor de Humbert-, uma crian=C3=A7a-mulher passa por Erwin, que, = ele pr=C3=B3prio, n=C3=A3o deixa de ter alguns pendores humbertianos, = embora seja apreciador especial de "gar=C3=A7ons manqu=C3=A9s". "The = Nursery Tale" n=C3=A3o =C3=A9 o tipo de f=C3=A1bula que os irm=C3=A3os = Grimm ou Hans Christian Andersen nos convidariam a apreciar.=20 Seq=C3=BC=C3=AAncia de pr=C3=A9-Lolitas=20 Sua trama, tratada com eleg=C3=A2ncia, brinca com uma fantasia = masculina cl=C3=A1ssica. O diabo se oferece para realizar os = t=C3=ADmidos sonhos er=C3=B3ticos de Erwin. Ele ter=C3=A1 um dia no = qual, por meio de seu comando mental, poder=C3=A1 escolher um = n=C3=BAmero ilimitado de garotas para serem suas parceiras de folguedos. = A d=C3=A9cima segunda e =C3=BAltima de suas concubinas =C3=A9 uma = crian=C3=A7a de cerca de 14 anos que aparece num vestido preto decotado: = "Havia algo de bizarro nesse rosto, bizarro era o olhar fugaz de seus = olhos muito brilhantes demais, e, se ela n=C3=A3o fosse apenas uma = menininha -a neta do velho, sem d=C3=BAvida-, poder-se-ia desconfiar que = seus l=C3=A1bios tinham sido retocados com ruge. Ela caminhava rebolando = os quadris muito, muito levemente; suas pernas se aproximavam mais, ela = perguntava algo a seu companheiro em voz alta -e, embora Erwin n=C3=A3o = tivesse dado nenhum comando mental, sabia que seu r=C3=A1pido sonho = secreto tinha sido realizado". Aqui, sem d=C3=BAvida, temos a primeira de uma seq=C3=BC=C3=AAncia = de pr=C3=A9-Lolitas, uma cadeia que, desse momento em diante, n=C3=A3o = mais ser=C3=A1 rompida. Ela ainda n=C3=A3o tem nome, mas j=C3=A1 =C3=A9 = uma ninfeta fatal, como Nabokov a descreveria mais tarde. E, desde o in=C3=ADcio, com sua primeira apari=C3=A7=C3=A3o em sua = obra, a figura revela tra=C3=A7os demon=C3=ADaco-fantasmag=C3=B3ricos, = aos quais o jovem autor ainda faz refer=C3=AAncia, sem se precaver. = Erwin =C3=A9 convocado =C3=A0 "rua Hoffman" =C3=A0 meia-noite, por um = dem=C3=B4nio. N=C3=A3o h=C3=A1 como deixar passar despercebida a = alus=C3=A3o de Nabokov: os contos fant=C3=A1sticos do rom=C3=A2ntico = alem=C3=A3o E.T.A. Hoffman interligam imperceptivelmente o sonho e a = realidade demon=C3=ADaca. Brian Boyd descreve "The Nursery Tale" como = sendo "propositalmente hoffmanesco". Mas desse mastro liter=C3=A1rio corre um fio de seda que o liga ao = "Lolita" alem=C3=A3o. N=C3=A3o ao final, mas j=C3=A1 em sua primeira = ora=C3=A7=C3=A3o, o conto de Lichberg indica o modelo em cuja = tradi=C3=A7=C3=A3o ele se enxerga: "Algu=C3=A9m atirou o nome de E.T.A. = Hoffman na conversa. Novelas musicais". Em companhia agrad=C3=A1vel, a conversa passa a girar em torno das = rela=C3=A7=C3=B5es entre arte e realidade, introduzindo uma narrativa = interior. =C3=89 essa a introdu=C3=A7=C3=A3o convencional =C3=A0 = hist=C3=B3ria de Lichberg -um artif=C3=ADcio do qual o pr=C3=B3prio = Nabokov, quando jovem, nem sempre se abstinha. A senhora da casa diz ao = jovem escritor presente: "Voc=C3=AA acha poss=C3=ADvel que essas coisas, = sobre as quais eu raramente chego mesmo a ler, possam me manter acordada = =C3=A0 noite? Minha raz=C3=A3o me diz que s=C3=A3o apenas fantasias, e, = no entanto..." "=C3=89 porque n=C3=A3o s=C3=A3o apenas fantasia, = condessa!" O diplomata deu um sorriso bem-humorado. "Mas voc=C3=AA = n=C3=A3o est=C3=A1 querendo dizer que Hoffman viveu esses terrores!" = "=C3=89 exatamente isso o que quero dizer", respondeu o escritor, "ele = os viveu, sim. N=C3=A3o, =C3=A9 claro, com suas m=C3=A3os e seus olhos. = Mas, como era escritor, ele viveu o que escreveu -ou, melhor dizendo, = escreveu apenas aquilo que j=C3=A1 vivera espiritualmente...'". =C3=89 a deixa para a interven=C3=A7=C3=A3o de outro ouvinte, um = professor universit=C3=A1rio que, at=C3=A9 esse momento, se mantivera em = sil=C3=AAncio. Ele quer relatar algo que pesa sobre sua mente h=C3=A1 = anos e que ele ainda n=C3=A3o sabe se foi experi=C3=AAncia ou fantasia. = Assim come=C3=A7a a narrativa real de uma hist=C3=B3ria altamente = hoffmanesca, uma hist=C3=B3ria cujo n=C3=BAcleo encerra justamente o = tema que germinou na fic=C3=A7=C3=A3o de Nabokov dos anos 20 em diante. Eis a base da hist=C3=B3ria. Na cidade do sul da Alemanha onde = estuda, o narrador entra em uma taverna pertencente a dois irm=C3=A3os = idosos e estranhos, com barbas revoltas, ruivas com tons grisalhos. Ele = se senta =C3=A0 mesa deles, recebe vinho espanhol para tomar e v=C3=AA = um len=C3=A7o de cabe=C3=A7a de seda preta em uma cadeira pr=C3=B3xima, = do tipo que as garotas espanholas usam em dias de festa. Ocorre a ele = que algo fora do comum pode estar acontecendo no lugar, mas ele n=C3=A3o = pensa mais no assunto. Certa noite, ao passar pela taverna, ele ouve = vozes jovens iradas, alteradas, uma briga violenta e um grito de pavor = sa=C3=ADdo da boca de uma mulher. Na manh=C3=A3 seguinte, por=C3=A9m, = tudo no estabelecimento dos dois irm=C3=A3os parece t=C3=A3o normal que = ele coloca sua experi=C3=AAncia em d=C3=BAvida e tem vergonha de = perguntar a eles sobre o que ouviu. Pouco depois ele parte em viagem = =C3=A0 Espanha, na qual conhecer=C3=A1 Lolita, e o leitor = descobrir=C3=A1 a solu=C3=A7=C3=A3o do mist=C3=A9rio. Lichberg batizou seus contos de "grotescos". A descri=C3=A7=C3=A3o = n=C3=A3o cai bem em sua "Lolita", que recebe tratamento mais condizente = com um conto g=C3=B3tico ou mesmo com as hist=C3=B3rias de fantasmas de = Hoffman. Nabokov n=C3=A3o estava acima de escrever romances = fantasmag=C3=B3ricos ao estilo de Hoffman. Al=C3=A9m da chamada = "dimens=C3=A3o espectral" que j=C3=A1 foi detectada em sua obra, ele = n=C3=A3o tinha receios em aderir a esse g=C3=AAnero resistente. Quando tinha a mesma idade em que Lichberg inventou sua = crian=C3=A7a-mulher espanhola, Nabokov-Sirin escreveu "La Veneziana", = uma hist=C3=B3ria que brinca com tropos dessa forma. O t=C3=ADtulo e o = t=C3=B3pico desse trabalho -que n=C3=A3o deixa de ter atrativos- de sua = fase inicial =C3=A9 uma pintura antiga que vem acompanhada de uma = hist=C3=B3ria incomum. O quadro representa uma beldade que possui uma = semelhan=C3=A7a espantosa com uma inglesa viva, mas que, na realidade, = =C3=A9 -ou deve ser- uma senhora veneziana de v=C3=A1rios s=C3=A9culos = atr=C3=A1s. A semelhan=C3=A7a =C3=A9 t=C3=A3o espantosa que o = protagonista da hist=C3=B3ria, que est=C3=A1 apaixonado pela inglesa, = passa sess=C3=B5es secretas sentado diante do retrato e, no final -como = na hist=C3=B3ria do pintor chin=C3=AAs-, desaparece dentro dela. A "Lolita" de Lichberg n=C3=A3o vai t=C3=A3o longe assim. No = entanto tamb=C3=A9m com essa rela=C3=A7=C3=A3o Nabokov poderia ter = encontrado nela seu tema, como se fosse espelhado. O viajante na Espanha = topa com um desenho na pens=C3=A3o que parece retratar sua amada. Mas a = impress=C3=A3o =C3=A9 enganosa. ""Voc=C3=AA pensa que =C3=A9 Lolita", = sorriu Severo, "mas =C3=A9 Lola, a av=C3=B3 da bisav=C3=B3 de Lolita, = que foi estrangulada por seu amante depois de uma briga, cem anos = atr=C3=A1s."' Eis, tamb=C3=A9m, a solu=C3=A7=C3=A3o do mist=C3=A9rio: o passado. = Com ele, chegamos ao cerne da trama de Lichberg. Lolita n=C3=A3o =C3=A9 = apenas uma menina encantadora qualquer: ela =C3=A9 amaldi=C3=A7oada e = sofre de compuls=C3=A3o repetitiva demon=C3=ADaca. O narrador fica = sabendo desse passado assombrado quando finalmente decide partir, = j=C3=A1 temendo o amor perigoso de Lolita. "Nos sentamos, e Severo = contou a hist=C3=B3ria =C3=A0 sua moda amig=C3=A1vel. Ele falou de = Lolita, que, em seu tempo, tinha sido uma das mulheres mais lindas da = cidade, t=C3=A3o bela que os homens que a amavam tinham que morrer. = Pouco ap=C3=B3s o nascimento de sua filha, ela foi assassinada por dois = de seus amantes, a quem ela atormentara at=C3=A9 lev=C3=A1-los =C3=A0 = loucura. E, desde ent=C3=A3o, foi como se uma maldi=C3=A7=C3=A3o tivesse = sido imposta =C3=A0 fam=C3=ADlia. As mulheres sempre tinham apenas uma = filha, e sempre morriam, dementes, algumas semanas depois de dar =C3=A0 = luz uma crian=C3=A7a. Mas todas as meninas eram lindas, t=C3=A3o lindas = quanto Lolita! "Minha mulher morreu assim", ele sussurrou em tom grave, = "e minha filha tamb=C3=A9m morrer=C3=A1.' Eu mal conseguia encontrar = palavras para confort=C3=A1-lo, pois o temor por minha pequena Lolita = era mais forte do que todos meus outros sentimentos. Quando entrei em = meu quarto, =C3=A0 noite, encontrei uma pequena flor vermelha, = desconhecida para mim, sobre o travesseiro de minha cama. O presente de = despedida de Lolita, pensei comigo mesmo, e a peguei em minha m=C3=A3o. = Ent=C3=A3o vi que, na realidade, era branca, e que s=C3=B3 estava = vermelha por estar tingida com o sangue de Lolita.=20 -------------------------------------------------------------------- Maldi=C3=A7=C3=A3o, demonismo, compuls=C3=A3o repetitiva: = s=C3=A3o essas as correntes subjacentes =C3=A0s duas lolitas=20 -------------------------------------------------------------------- =20 Era assim que ela amava." Nessa noite o narrador =C3=A9 testemunha = de uma cena fantasmag=C3=B3rica de assassinato. Ele pensa ver como = Lolita -n=C3=A3o: sua antepassada, Lola, "ou ter=C3=A1 realmente sido = Lolita?"- leva dois amantes =C3=A0 f=C3=BAria e acaba sendo morta por = eles. Nos assassinos, ele reconhece os g=C3=AAmeos Aloys e Anton Walzer. = Na manh=C3=A3 seguinte, ele descobre que Lolita morreu durante a noite. = "N=C3=A3o posso descrever o que essas palavras me fizeram, e, se eu = pudesse, seria como uma profana=C3=A7=C3=A3o falar disso. Minha amada = Lolita, minha pequena, estava deitada em sua caminha estreita, com os = olhos bem abertos. Seus dentes estavam cerrados convulsivamente sobre = seu l=C3=A1bio inferior, e seus cabelos loiros e perfumados estavam = revoltos." Com o cora=C3=A7=C3=A3o partido, ele deixa a Espanha no navio = seguinte. "Mas a alma de Lolita eu levei comigo." Anos mais tarde, ele = retorna =C3=A0 cidade do sul da Alemanha, indaga sobre os irm=C3=A3os = Walzer e fica sabendo que, na manh=C3=A3 ap=C3=B3s a noite em que Lolita = morreu, eles foram encontrados mortos em suas cadeiras de reclinar ao = lado do fog=C3=A3o, com sorrisos amig=C3=A1veis nos rostos. = Maldi=C3=A7=C3=A3o, demonismo, compuls=C3=A3o repetitiva: s=C3=A3o essas = as correntes subjacentes =C3=A0 outra "Lolita", tamb=C3=A9m. A = crian=C3=A7a-mulher de Nabokov tamb=C3=A9m =C3=A9 uma "revenant", a = reencarna=C3=A7=C3=A3o de uma "gamine sans merci" anterior, fatal. = Annabel, sua primeira paix=C3=A3o da praia, incute o desejo pelas = ninfetas para sempre em Humbert. Ela lhe lan=C3=A7a um feiti=C3=A7o do = qual ele s=C3=B3 poder=C3=A1 escapar ao deixar que ela reencarne em = Lolita. O livro de Nabokov n=C3=A3o trata de pedofilia, mas de = demonismo. Humbert vive sob uma compuls=C3=A3o = er=C3=B3tico-demon=C3=ADaca. J=C3=A1 em seu "The Nursery Tale" =C3=A9 o = dem=C3=B4nio quem entrega a primeira Lolita ao her=C3=B3i. Isso n=C3=A3o = mudou em sua "chef d'oeuvre". De acordo com a queixa contundente de = Humbert, =C3=A9 o pr=C3=B3prio dem=C3=B4nio quem o incentiva e o faz de = tolo e quem, mais tarde, ter=C3=A1 que lhe dar um descanso se quiser = conserv=C3=A1-lo como seu brinquedo por mais tempo. Mas n=C3=A3o =C3=A9 = apenas Humbert o objeto das maquina=C3=A7=C3=B5es demon=C3=ADacas. Por = sua defini=C3=A7=C3=A3o inconfund=C3=ADvel, a ninfeta n=C3=A3o =C3=A9 = humana, mas demon=C3=ADaca. Lolita =C3=A9 "o dem=C3=B4nio imortal = disfar=C3=A7ado em crian=C3=A7a menina". Ser=C3=A1 preciso dizer que a = Lolita de Lichberg tamb=C3=A9m est=C3=A1 presente aqui, nos bastidores? = A menina de Lichberg tamb=C3=A9m =C3=A9 metade dem=C3=B4nio, metade = v=C3=ADtima de uma maldi=C3=A7=C3=A3o e, como seu amante, sujeita a uma = compuls=C3=A3o vinda do passado. Em Lichberg, h=C3=A1 at=C3=A9 mesmo um = prazo temporal preciso para o feiti=C3=A7o entrar em a=C3=A7=C3=A3o. = Quando o narrador deixa Lolita, ela o morde na m=C3=A3o com toda a = for=C3=A7a de sua boquinha. "Essas cicatrizes do amor", confessa a = v=C3=ADtima a seus ouvintes, "se conservaram indel=C3=A9veis, mesmo 25 = anos mais tarde." Encontramos o mesmo intervalo de tempo quando Humbert = v=C3=AA Lolita pela primeira vez -seu primeiro amor reencarnado, aquela = de cujo encantamento ele jamais escapou: "Os 25 anos que vivi desde = ent=C3=A3o reduziram-se a um ponto latejante e se desvaneceram."=20 Perda de identidade=20 Em seu caso, tamb=C3=A9m, um quarto de s=C3=A9culo n=C3=A3o foi = capaz de extinguir a magia do primeiro amor-maldi=C3=A7=C3=A3o. E o = padr=C3=A3o -=C3=A9 o padr=C3=A3o de todas as hist=C3=B3rias de amor e = de morte- persiste. O que se repete compulsivamente ao longo dos anos = sempre termina por explodir em viol=C3=AAncia. A hist=C3=B3ria de = Lichberg nos conduz =C3=A0 cena, que lembra um sonho, de um assassinato = dram=C3=A1tico e grotesco. A cruel Lola chama seus amantes a competirem = por ela. Ela amar=C3=A1 aquele que se revelar mais forte -eles crescem = at=C3=A9 seus ossos racharem; amar=C3=A1 o mais velho -o cabelo cai de = suas cabe=C3=A7as; amar=C3=A1 aquele que tem a barba mais comprida e = feia -longos p=C3=AAlos ruivos se projetam dos rostos distorcidos dos = irm=C3=A3os Walzer, que ent=C3=A3o, aos gritos de f=C3=BAria e desespero = bestial, se atiram sobre Lola e a estrangulam. "Fale pela =C3=BAltima = vez -ou ir=C3=A1s ao inferno com sua beleza tr=C3=AAs vezes = amaldi=C3=A7oada." O final do livro de Nabokov tamb=C3=A9m =C3=A9 uma = morte fantasmag=C3=B3rica, que lembra algo sa=C3=ADdo de um sonho. = Humbert e Clare Quilty, os dois amantes de Lolita, se misturam nessa = cena, tornando-se os g=C3=AAmeos que foram desde o in=C3=ADcio em = Lichberg. O sedutor de Lolita, Quilty, =C3=A9 a sombra escura de = Humbert, seu segundo eu. Em sua briga, eles chegam a perder suas = identidades gramaticais: "Rolei sobre ele. Rolamos sobre mim. Rolaram = sobre ele. Rolamos sobre n=C3=B3s". Quando Humbert finalmente consegue = matar seu alter ego -o que =C3=A9 dif=C3=ADcil, j=C3=A1 que as balas no = corpo de Quilty, em lugar de destru=C3=AD-lo, parecem lhe infundir nova = energia-, ele sela sua pr=C3=B3pria sorte. Algumas semanas mais tarde, = tamb=C3=A9m Humbert, o s=C3=A1tiro tr=C3=A1gico, =C3=A9 um homem morto.=20 A arte tem a =C3=BAltima palavra=20 No conto de Lichberg, n=C3=A3o =C3=A9 o rival quem =C3=A9 morto, = mas a mulher. Mas Nabokov tamb=C3=A9m brinca com essa variante. N=C3=A3o = apenas o "leitmotiv" de cita=C3=A7=C3=B5es de "Carmen" atrai seu leitor = at=C3=A9 o fim por essa trilha falsa, sugerindo que o amante tra=C3=ADdo = pode acabar por disparar contra sua amada infiel. Mesmo em seu adeus a = Lolita, Humbert flerta com a id=C3=A9ia de sacar seu rev=C3=B3lver e = fazer algo est=C3=BApido. Como sabemos, a gr=C3=A1vida senhora Schiller, = em quem Lolita se transformou, =C3=A9 poupada desse fim. Indiretamente, por=C3=A9m, a maldi=C3=A7=C3=A3o ainda parece se = irradiar da obra de Lichberg. Lola =C3=A9 assassinada logo ap=C3=B3s a = morte de sua filha. Lolita morre nas semanas seguintes ao parto de sua = filha natimorta. A =C3=BAltima palavra, =C3=A9 claro, n=C3=A3o =C3=A9 da morte, mas = da arte. Lolita e sua hist=C3=B3ria, repleta de sangue, tutano e lindas = moscas verdes reluzentes, fazem de Humbert um escritor. O romance = termina com sua esperan=C3=A7a da =C3=BAnica imortalidade que ele e sua = musa poder=C3=A3o dividir: o ref=C3=BAgio da arte. O amante do conto de = Lichberg segue o mesmo caminho. Tamb=C3=A9m ele =C3=A9 iniciado na arte = por Lolita. Quando conclui sua hist=C3=B3ria, a condessa -que o ouviu de = olhos fechados- murmura: "Voc=C3=AA =C3=A9 um poeta". Existem apenas = tr=C3=AAs possibilidades, pelo menos at=C3=A9 que algu=C3=A9m nos mostre = uma quarta. A primeira =C3=A9 que estamos na presen=C3=A7a de uma dessas = coincid=C3=AAncias fortuitas que ocorrem repetidas vezes na = hist=C3=B3ria da arte e da ci=C3=AAncia. Essa possibilidade n=C3=A3o = pode ser exclu=C3=ADda. Mas, pelas barbas do profeta, isso seria um = verdadeiro milagre. A segunda possibilidade =C3=A9 que Nabokov tinha conhecimento do = conto de Lichberg e, metade inserindo e metade apagando seus rastros, se = prestou =C3=A0quela arte da cita=C3=A7=C3=A3o =C3=A0 qual Thomas Mann, = ele pr=C3=B3prio mestre nela, dava o nome de "pl=C3=A1gio de alto = n=C3=ADvel". Pl=C3=A1gio? Um absurdo. Afinal, a literatura sempre = envolveu a repeti=C3=A7=C3=A3o de motivos j=C3=A1 familiares: em que ela = consiste, sen=C3=A3o em literatura? Entretanto, deixando isso de lado, = essa segunda possibilidade =C3=A9 t=C3=A3o improv=C3=A1vel quanto a = primeira. Ela n=C3=A3o combina com Nabokov. Alus=C3=B5es a Poe, Proust = ou Puchkin, a Shakespeare, Chateaubriand ou Joyce, que pululam em sua = obra, possuem uma val=C3=AAncia que alus=C3=B5es a um escritor menor e = desconhecido jamais poderiam ter. Nabokov n=C3=A3o tinha necessidade de = plagiar e tampouco teria enobrecido um Von Lichberg, citando o nome de = sua hero=C3=ADna. Isso deixa a terceira possibilidade como o palpite mais = plaus=C3=ADvel. De alguma maneira misteriosa, ""A Gioconda Maldita", de = Lichberg, caiu nas m=C3=A3os de Nabokov. Folheando o livro, ele poderia = ter topado com a hist=C3=B3ria da ninfeta, e assim o tema teria = come=C3=A7ado a passear por sua mente. Ele esqueceu a hist=C3=B3ria ou = pensou t=C3=AA-la esquecido. Tamb=C3=A9m desse fen=C3=B4meno, a = criptomn=C3=A9sia, a hist=C3=B3ria da arte oferece exemplos suficientes. D=C3=A9cadas mais tarde, atra=C3=ADdos =C3=A0 superf=C3=ADcie por = novas iscas, nomes e partes dos detalhes come=C3=A7aram a sair das = profundezas de sua mem=C3=B3ria. O momento de maior acerto ao escrever, = explicou Nabokov em entrevista que concedeu =C3=A0 televis=C3=A3o em = 1966, lhe ocorria quando ele se percebia indagando: "Como isso veio = at=C3=A9 mim? Como =C3=A9 que existia em minha cabe=C3=A7a antes mesmo = de eu pensar nisso?". Tal =C3=A9 a gra=C3=A7a da inspira=C3=A7=C3=A3o. = Como a b=C3=AAn=C3=A7=C3=A3o b=C3=ADblica de duas faces, ela pode vir do = alto, mas tamb=C3=A9m pode ascender dos calabou=C3=A7os da mem=C3=B3ria. O patinho feio e o cisne soberbo -se essa imagem remete em demasia = aos contos de fada, ela tamb=C3=A9m pode ser expressa mais tecnicamente. = Heinz von Lichberg, que n=C3=A3o deixava de possuir talento, mas era = abertamente imaturo, se ocupou em fabricar sua "Lolita" com pano, = madeira, papel e barbante. Vladimir Nabokov usou materiais semelhantes = -mas, com eles, criou um papagaio que desapareceu no c=C3=A9u azul da = literatura.=20 -------------------------------------------------------------------------= - Michael Maar =C3=A9 pesquisador e ensa=C3=ADsta alem=C3=A3o. A = vers=C3=A3o integral do artigo acima foi publicada no "Times Literary = Supplement". Tradu=C3=A7=C3=A3o de Clara Allain. =20 ----- Original Message -----=20 From: D. Barton Johnson=20 To: NABOKV-L@LISTSERV.UCSB.EDU=20 Sent: Monday, August 02, 2004 3:33 PM Subject: Fw: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequ=D0=99ncia = extraordinariamente ... ----- Original Message -----=20 From: Jansy Berndt de Souza Mello=20 To: D. Barton Johnson=20 Sent: Monday, August 02, 2004 8:43 AM Subject: Re: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequ=C3=AAncia = extraordinariamente ...=20 PS: I forgot to tell you that "suspension dots" in Portuguese are called = "retic=C3=AAncias" ( "reticences" wouldn=C2=B4t seem to be VN=C2=B4s = tactics ...nor the dotting lines on the wings of the butterfly, nor = VN=C2=B4s play with "Dolores" on a dotted line). J. ------=_NextPart_001_0067_01C478AA.44FD9760 Content-Type: text/html; charset="utf-8" Content-Transfer-Encoding: quoted-printable =EF=BB=BF
 

Dear=20 Don, it seems that you sent more than you intended to in your = Nabokov-L=20 posting.  Anyway, here is the Nabokov sighting=20 that = I had sent=20 you a few weeks ago. It was published in the "Folha de S=C3=A3o = Paulo" special=20 edition. The first text offers a translation of Rorty=C2=B4s = comment on Pale=20 Fire, since a new revised translation of this novel was announced = at that=20 time. The second text is  Michael=20 Maar=C2=B4s.
 
 
 
REVIVENDO OS VIVOS

Patrim=C3=B4nio Vladimir=20 Nabokov/Reprodu=C3=A7=C3=A3o
O escritor Vladimir=20 = Nabokov


FIL=C3=93SOFO=20 NORTE-AMERICANO DISCUTE "FOGO P=C3=81LIDO", DE VLADIMIR NABOKOV, = REEDITADO=20 AGORA NO BRASIL

por Richard Rorty

A = imagina=C3=A7=C3=A3o,=20 dizia Wallace Stevens, =C3=A9 a mente reagindo =C3=A0 press=C3=A3o = da realidade. Mas =C3=A9 do=20 interesse da realidade -ou seja, da imagina=C3=A7=C3=A3o dos = mortos- que nenhuma=20 nova rea=C3=A7=C3=A3o seja necess=C3=A1ria: que a = imagina=C3=A7=C3=A3o dos vivos n=C3=A3o possa fazer=20 nada sen=C3=A3o reiterar li=C3=A7=C3=B5es previamente aprendidas e = exemplificar verdades=20 j=C3=A1 sabidas. Resenhadores de bom senso devem pressupor que = n=C3=A3o se pode=20 escrever nada de genuinamente novo, pois s=C3=B3 assim = estar=C3=A3o em condi=C3=A7=C3=A3o de=20 julgar o livro que est=C3=A3o resenhando sem o perigo de se verem = julgados por=20 este. =C3=80 maneira do resenhador de bom senso, o leitor comum = sente-se=20 nervoso diante de livros que n=C3=A3o s=C3=A3o suficientemente = semelhantes aos=20 livros que ele leu no passado.
Vladimir Nabokov (1899-1977) = escreveu=20 livros nada parecidos aos demais e que raramente tiveram boas = resenhas. A=20 maior parte dos cr=C3=ADticos fez eco ao dito de Samuel Johnson = -nada de=20 estranho pode durar- e cuidaram de diagnosticar as esquisitices de = Nabokov=20 como =C3=ADndices de seu desd=C3=A9m ego=C3=ADsta pela realidade, = desd=C3=A9m que encobria sua=20 incapacidade de imitar a realidade persuasivamente. Simon Raven,=20 resenhando "Fogo P=C3=A1lido" em 1962, ano de sua = publica=C3=A7=C3=A3o, afirmou que n=C3=A3o=20 se tratava de "um romance, mas de um prot=C3=B3tipo". A resenha de = Saul Maloff=20 explicava que, "desde sempre, a raz=C3=A3o de ser do romancista" = =C3=A9 "a cria=C3=A7=C3=A3o=20 de um mundo", ao passo que Nabokov criara apenas "uma = constela=C3=A7=C3=A3o de=20 bibel=C3=B4s elegantes e maravilhosos -por defini=C3=A7=C3=A3o, = uma arte menor". Resenha=20 atr=C3=A1s de resenha reconhecia o engenho de Nabokov e lamentava = sua=20 auto-sufici=C3=AAncia, seu deleite com os pr=C3=B3prios truques, = truques que punham=20 a nu a sua falta de respeito pela realidade e pelo leitor comum. = Dwight=20 Macdonald declarou o livro "ileg=C3=ADvel", sublinhou que, mesmo = em seus=20 melhores momentos, Nabokov era "menor" e insistia que "os esmeros = t=C3=A9cnicos=20 que Nabokov dedica ao projeto s=C3=A3o t=C3=A3o ostensivos que = acabam por destruir=20 todo o prazer est=C3=A9tico do leitor". Incomodado pelo fato de = Mary McCarthy=20 ter considerado ""Fogo P=C3=A1lido" uma cria=C3=A7=C3=A3o de = perfeita beleza, simetria,=20 estranheza, originalidade e verdade moral", Macdonald explicava = que tanto=20 o romance como a resenha de McCarthy eram "exerc=C3=ADcios de = engenho=20 despropositado".
Nabokov n=C3=A3o tinha nenhum interesse na = cria=C3=A7=C3=A3o de um=20 mundo como aquele a que Raven, Maloff e Macdonald estavam = acostumados.=20 Certa vez, declarou que "dizemos que uma coisa =C3=A9 semelhante a = tal outra=20 coisa, quando o que realmente adorar=C3=ADamos seria descrever = algo que n=C3=A3o tem=20 par na terra". Era esse o anseio que tanto incomodava tantos = resenhadores.=20 Para aqueles que gostariam que a realidade fosse tratada com o = devido=20 respeito, esse anseio =C3=A9 um =C3=ADndice de = auto-sufici=C3=AAncia ego=C3=ADsta. "Ego=C3=ADsmo" =C3=A9=20 o nome que a realidade d=C3=A1 a tudo o que chama = aten=C3=A7=C3=A3o para si mesmo -tudo o=20 que =C3=A9 estranho, duro de entender, dif=C3=ADcil de acompanhar. = Quem respeita a=20 realidade, quem tem certeza de que n=C3=A3o h=C3=A1 por que = submet=C3=AA-la a novas=20 press=C3=B5es, dir=C3=A1 que tudo o que =C3=A9 digno de nota = j=C3=A1 faz parte da realidade e=20 precisa apenas ser representado com precis=C3=A3o. O que n=C3=A3o = faz parte da=20 realidade =C3=A9 subjetivo, pessoal, idiossincr=C3=A1tico, tolo, = pueril,=20 evanescente, indigno de nota. Pois, para olhos respeitadores, a = realidade=20 =C3=A9 a =C3=BAnica autoridade leg=C3=ADtima. O anseio do poeta em = exercer press=C3=A3o sobre=20 a realidade parece n=C3=A3o apenas f=C3=BAtil, mas ainda = moralmente=20 equ=C3=ADvoco.
Agora, os cr=C3=ADticos e historiadores da = literatura come=C3=A7aram a=20 reconhecer que o livro, afinal de contas, h=C3=A1 de durar. Aos = poucos, o=20 romance vai adquirindo a aura de um cl=C3=A1ssico, obra de uma das = imagina=C3=A7=C3=B5es=20 mais poderosas que o s=C3=A9culo 20 criou. Essa esp=C3=A9cie de = reconhecimento =C3=A9 um=20 dos expedientes de que a realidade lan=C3=A7a m=C3=A3o para = n=C3=A3o ter que admitir o=20 golpe que levou. Como se, na calada da noite, sem ningu=C3=A9m por = perto, a=20 realidade emitisse pseud=C3=B3podos para incorporar o =C3=BAltimo = corpo estranho. De=20 manh=C3=A3, a realidade estar=C3=A1 t=C3=A3o fresca e rija quanto = antes (mesmo que um=20 pouquinho crescida). E algo que de fato n=C3=A3o tinha par na = terra se converte=20 em mais um fato terrestre e objetivo, =C3=A0 espera de ser = observado. =C3=80s vezes,=20 por=C3=A9m, quando o corpo estranho =C3=A9 grande demais ou = complexo demais, o=20 processo de assimila=C3=A7=C3=A3o n=C3=A3o estar=C3=A1 = conclu=C3=ADdo quando a manh=C3=A3 chegar. Nesses=20 casos, podemos surpreender a realidade sugando a vida de uma = met=C3=A1fora ou=20 convertendo um paradoxo numa platitude ou dando fei=C3=A7=C3=B5es = de cl=C3=A1ssico a um=20 esc=C3=A2ndalo.
"Lolita" n=C3=A3o se parecia a nada que Morris = Bishop, bom=20 leitor, bom homem e melhor amigo de Nabokov em Cornell, tivesse = lido; seu=20 asco diante da sordidez de Humbert impediu-o de ler o manuscrito = at=C3=A9 o=20 fim. Trinta anos mais tarde, a neta de Bishop teve de ler "Lolita" = na=20 escola secund=C3=A1ria. =C3=80 medida que "Lolita" e "Fogo = P=C3=A1lido" se convertam em=20 leitura curricular e tema de prova, Humbert Humbert e Charles = Kinbote=20 vir=C3=A3o a ser personagens liter=C3=A1rios conhecidos, = componentes familiares da=20 realidade em que crescemos. Quanto mais isso aconte=C3=A7a, mais = prov=C3=A1vel ser=C3=A1=20 que ambos se fundem =C3=A0 figura de seu criador, mais = prov=C3=A1vel ser=C3=A1 que os=20 leitores de Nabokov pensem que est=C3=A3o lendo sobre Nabokov, = quando na=20 verdade est=C3=A3o lendo sobre esses dois monstros encantadores. = Quanto mais se=20 fa=C3=A7a essa identifica=C3=A7=C3=A3o inconsciente, menos se = recordar=C3=A3o as pessoas de=20 que Humbert e Kinbote manipulam as fam=C3=ADlias Haze e Shade e, = em especial,=20 seus membros mais jovens, Lolita Haze e Hazel Shade.
Brian = Boyd, cuja=20 espl=C3=AAndida biografia serve bem =C3=A0 causa de Nabokov, ao = tornar menos f=C3=A1cil a=20 incorpora=C3=A7=C3=A3o de seus livros, conta que, entre todos os = personagens de seus=20 romances que Nabokov admirava como seres humanos, Lolita s=C3=B3 = perdia para=20 Pnin. Mas os leitores de Lolita muitas vezes t=C3=AAm dificuldade = para=20 conseguir focaliz=C3=A1-la. Parecem n=C3=A3o lembrar de nada = al=C3=A9m da criatura de=20 Humbert, sua inven=C3=A7=C3=A3o: a ninfeta, mais que a = garotinha.
De modo que =C3=A9=20 dif=C3=ADcil aceitar a id=C3=A9ia de que ela fosse um = espl=C3=AAndido ser humano. Mesmo=20 assim, como os leitores de "Lolita" recordar=C3=A3o vagamente, a = garota era=20 valente: de algum modo, ela conseguiu se livrar de Quilty e = encontrou um=20 bom homem, capaz de lhe dar um filho. Constituiu um lar para ele e = para a=20 crian=C3=A7a que devia nascer perto do Natal em Gray Star, "um = povoado no=20 noroeste mais remoto", onde faz muito frio. Pensando bem, Nabokov = diz em=20 alguma passagem que Gray Star =C3=A9 "a capital do livro". =C3=89 = ent=C3=A3o que nos=20 damos conta novamente: Humbert era o =C3=BAnico a pensar que havia = inventado=20 Lolita; n=C3=B3s n=C3=A3o t=C3=ADnhamos por que achar o mesmo. = N=C3=B3s dever=C3=ADamos lembrar que=20 Humbert era dado a esquecer: os solu=C3=A7os de Lolita durante a = noite, seu=20 irm=C3=A3o morto, a crian=C3=A7a que teria substitu=C3=ADdo o = irm=C3=A3o. Como=20 esquecemos?
Esquecemos porque Nabokov cuidou que = esquec=C3=AAssemos=20 temporariamente. Ele programou tudo para que esquec=C3=AAssemos = primeiro e=20 lembr=C3=A1ssemos depois, confusos e culpados. Seu livro segue nos = manipulando=20 mesmo depois de fechado. A raz=C3=A3o pela qual ser=C3=A1 = relativamente dif=C3=ADcil=20 transformar "Lolita" em um cl=C3=A1ssico =C3=A9 que n=C3=B3s, = guardi=C3=B5es da legitimidade,=20 servos da realidade, s=C3=B3 podemos fazer coment=C3=A1rios = abalizados sobre um=20 romance e encontrar nele ilustra=C3=A7=C3=B5es admir=C3=A1veis de = verdades gerais se o=20 tivermos sob controle. Temos que ganhar dist=C3=A2ncia dele, a fim = de=20 observ=C3=A1-lo fixamente, por inteiro.
Mas Nabokov cuida que, = justo quando=20 pens=C3=A1vamos ter recuado alguns passos e encontrado o lugar = correto para=20 observar o livro em perspectiva, tenhamos a sensa=C3=A7=C3=A3o = fantasmag=C3=B3rica de que=20 =C3=A9 o livro que est=C3=A1 olhando para n=C3=B3s de uma = dist=C3=A2ncia consider=C3=A1vel e =C3=A0s=20 risadelas. O embara=C3=A7o resultante costuma se manifestar na = forma de=20 exaspera=C3=A7=C3=A3o renovada diante do ego=C3=ADsmo de Nabokov, = de seu gosto infantil=20 pelos truques e pela novidade tola.
O que vale para "Lolita" = vale para=20 "Fogo P=C3=A1lido". Quando se l=C3=AA o livro pela primeira vez, = n=C3=B3s nos absorvemos=20 numa boa hist=C3=B3ria, narrada por um senhor meio esquisito, mas = encantador, e=20 isso antes mesmo de chegar ao fim da introdu=C3=A7=C3=A3o. O que = vem em seguida -os=20 999 versos rimados de "Fogo P=C3=A1lido"- soa como uma = interrup=C3=A7=C3=A3o ligeiramente=20 infeliz. Talvez n=C3=A3o seja justo for=C3=A7ar um amante de boas = hist=C3=B3rias a=20 atravessar laboriosamente um poema longo antes de retornar =C3=A0 = trama. Mas=20 vamos l=C3=A1, dizemos ponderadamente, o poema n=C3=A3o =C3=A9 = t=C3=A3o longo assim. Depois de=20 nos perturbarmos um pouco com a hist=C3=B3ria do suic=C3=ADdio de = Hazel Shade no=20 segundo canto e de nos entediarmos um pouquinho com as = reflex=C3=B5es sobre a=20 morte no terceiro canto e sobre o processo criativo no quarto = canto,=20 tornamos =C3=A0 hist=C3=B3ria que o poema interrompeu. Voltamos = =C3=A0 companhia de=20 Kinbote, intrigante, mas d=C3=BAbia tamb=C3=A9m, e come=C3=A7amos = a nos divertir com seu=20 jeito de se intrometer alegremente no que, em teoria, =C3=A9 um = coment=C3=A1rio ao=20 poema que j=C3=A1 come=C3=A7amos a esquecer.
Cinq=C3=BCenta = p=C3=A1ginas depois, esquecemos=20 tudo a respeito de John Francis Shade (1898-1959, a = introdu=C3=A7=C3=A3o j=C3=A1 dizia,=20 vale lembrar, que ele morrera logo depois de escrever "Fogo = P=C3=A1lido", pobre=20 homem!). Pois agora estamos imersos nas aventuras de uma figura = bem mais=20 interessante: Charles Xavier Vseslav, =C3=BAltimo rei de Zembla = (reinante entre=20 1936-1958). Se o =C3=BAnico grande acontecimento na vida de Shade = parece ter=20 sido o infeliz suic=C3=ADdio de sua jovem filha, a hist=C3=B3ria = da juventude de=20 Xavier =C3=A9 repleta de incidentes. Mais ainda, ela possui aquele = profundo=20 interesse humano que sempre se prende =C3=A0s hist=C3=B3rias da = realeza, para n=C3=A3o=20 falar daquele fremitozinho extra que sentimos ao ler sobre a = c=C3=B3pula de=20 jovens faunos.
Cem p=C3=A1ginas mais tarde, estamos convencidos = de que=20 Charles Kinbote e Charles Xavier s=C3=A3o a mesma pessoa. Isso nos = proporciona=20 n=C3=A3o somente a satisfa=C3=A7=C3=A3o de saber que nosso = interesse por Kinbote foi=20 recompensado, mas ainda a sensa=C3=A7=C3=A3o basbaque de que a = realeza achou por bem=20 nos tratar como confidentes. Um ex-rei, triste, mas bonito e bem = lido,=20 confia em n=C3=B3s a ponto de nos contar coisas que = pouqu=C3=ADssimas pessoas=20 poderiam adivinhar. Shade aparece de vez em quando, e suspeitamos = de que=20 ele tamb=C3=A9m pode ter sido clarividente o bastante para = perceber, como n=C3=B3s,=20 quem Kinbote de fato =C3=A9. Mas as apari=C3=A7=C3=B5es de Shade = s=C3=A3o sempre sucedidas e=20 obliteradas pela revela=C3=A7=C3=A3o de algum fato novo e = surpreendente sobre nosso=20 not=C3=A1vel anfitri=C3=A3o e comentador. =C3=89 t=C3=A3o-somente = nas p=C3=A1ginas finais do=20 romance que somos novamente for=C3=A7ados a pensar seriamente em = Shade. Pois=20 agora algo de fato acontece: ele =C3=A9 morto. Shade retorna = =C3=A0 hist=C3=B3ria de=20 Kinbote no mesmo momento em que Gradus, o regicida enviado pelo = governo=20 revolucion=C3=A1rio de Zembla, est=C3=A1 a ponto de cumprir sua = miss=C3=A3o.
T=C3=A3o logo=20 Shade morre, o romance come=C3=A7a a cair em peda=C3=A7os. Nossa = aten=C3=A7=C3=A3o =C3=A9=20 subitamente puxada de volta ao poema que esquecemos por tanto = tempo. Pois=20 Gradus surge no momento em que Shade finalmente entrega a Kinbote = o=20 manuscrito de "Fogo P=C3=A1lido". Enquanto Shade, ca=C3=ADdo no = ch=C3=A3o, se esvai em=20 sangue, Kinbote corre para dentro da casa, a fim de buscar um copo = d'=C3=A1gua=20 para o amigo moribundo e esconder o manuscrito sob uma pilha de = galochas=20 de ninfetas dentro de um arm=C3=A1rio. Ap=C3=B3s alguma demora = desagrad=C3=A1vel (Kinbote=20 tem que gastar algum tempo com a vi=C3=BAva de Shade, a = pol=C3=ADcia e coisas do=20 g=C3=AAnero), ele pode enfim recuperar o manuscrito. Ele o l=C3=AA = rosnando, "como=20 um jovem e furioso herdeiro que percorre o testamento deixado por = um velho=20 impostor", dando-se conta de que o poema n=C3=A3o trata dele = mesmo, mas de seu=20 autor.
N=C3=B3s, leitores, a essa altura completamente = emaranhados =C3=A0s=20 esperan=C3=A7as e aos temores de Kinbote, nos surpreendemos a = compartilhar a=20 decep=C3=A7=C3=A3o avassaladora de Kinbote, muito embora n=C3=B3s = mesmos j=C3=A1 tenhamos lido=20 o poema e saibamos muito bem que tratava dos Shades, e n=C3=A3o da = derrocada da=20 monarquia em Zembla. N=C3=B3s tamb=C3=A9m nos perguntamos como = Shade p=C3=B4de ser t=C3=A3o=20 insens=C3=ADvel e cruel a ponto de n=C3=A3o fazer nenhum uso do = material maravilhoso=20 que seu amigo Kinbote lhe oferecia constantemente. Entretanto as = d=C3=BAvidas=20 que n=C3=B3s, monarquistas leais, temos deixado impacientemente de = lado ao=20 longo de 200 p=C3=A1ginas come=C3=A7am a refluir. Talvez = (ali=C3=A1s, muito=20 provavelmente) n=C3=A3o sejamos os confidentes de um rei, mas as = v=C3=ADtimas de um=20 lun=C3=A1tico.
Zembla, recordamos, n=C3=A3o figura em nenhum = mapa que se conhe=C3=A7a.=20 Os castelos ao p=C3=B4r-do-sol come=C3=A7am a ruir diante de = nossos olhos. Toda a=20 hist=C3=B3ria mirabolante talvez n=C3=A3o tenha sido mais que a = inven=C3=A7=C3=A3o de um=20 acad=C3=AAmico exilado e enlouquecido, um monstro de ego=C3=ADsmo = que nos arrebatou=20 com suas fantasias absurdas. A =C3=BAnica pessoa sadia, mais = ainda, a =C3=BAnica=20 pessoa decente =C3=A0 vista (seja no romance, seja na sala onde o = lemos) vem a=20 ser o sujeito que esquecemos h=C3=A1 tempos, o homem que escreveu = o poema cujo=20 acontecimento central n=C3=B3s preferimos n=C3=A3o lembrar: o doce = e trapalh=C3=A3o John=20 Shade, com seus valores familiares fora de moda.
Enquanto vemos = ruir os=20 castelos, lembramos que torres envoltas em nuvens s=C3=A3o = sujeitas a=20 dissolu=C3=A7=C3=A3o. E, enquanto procuramos desesperadamente por = Nabokov, para lhe=20 pedir que nos leve a seu pr=C3=B3prio ponto de vista, que nos = mostre de onde=20 observar o romance com clareza, n=C3=B3s nos damos conta de que = estamos=20 precisamente onde ele queria que estiv=C3=A9ssemos: ouvindo = Kinbote dizer:=20 "Muito bem, minha gente, acho que muitos dos presentes neste belo = sal=C3=A3o=20 t=C3=AAm tanta fome e tanta sede quanto eu, e acho melhor, meus = amigos, parar=20 por aqui". =C3=89 como se Pr=C3=B3spero, ap=C3=B3s explicar que em = breve mandar=C3=A1 seu=20 livro para o fundo do mar, viesse at=C3=A9 a beira do palco para = anunciar que=20 haver=C3=A1 frutas e bebidas =C3=A0 venda no p=C3=A1tio logo = depois do espet=C3=A1culo, que os=20 assinantes ser=C3=A3o bem-vindos nos camarins, mas que, = infelizmente, o autor=20 da pe=C3=A7a, que adoraria estar ali para encontrar seus muitos = amigos, est=C3=A1=20 fora da cidade.
Assim como =C3=A9 preciso muito esfor=C3=A7o = para lembrar que=20 Lolita solu=C3=A7ava no meio da noite, =C3=A9 tamb=C3=A9m preciso = muito esfor=C3=A7o para=20 lembrar de Hazel Shade, a mo=C3=A7a acima do peso cujo corpo foi = retirado do=20 lago Omega no segundo canto. Mas o lago =C3=A9 o tra=C3=A7o = topogr=C3=A1fico central de=20 "Fogo P=C3=A1lido". A busca de um ponto de vista acabar=C3=A1 por = conduzir o leitor=20 =C3=A0s margens pantanosas do lago e ao centro exato do poema: "Da = margem=20 destacou-se um indistinto/ Vulto que o p=C3=A2ntano, voraz, = sorveu".


Os "truques" de Nabokov eram os transbordamentos = ebulientes de=20 uma mente bem mais =C3=A1gil do que a nossa; ele queria = aprimorar a si e=20 a seus leitores


Aos poucos percebemos que a = morte mais=20 importante em "Fogo P=C3=A1lido" =C3=A9 a mesma que importa no = poema "Fogo P=C3=A1lido":=20 n=C3=A3o a de Shade, mas a de sua filha. Shade tinha 61 anos = quando foi morto=20 por acidente (por um regicida incompetente, se dermos cr=C3=A9dito = a Kinbote,=20 ou, mais provavelmente, por um lun=C3=A1tico =C3=A0 solta, Jack = Grey, que confundiu=20 Shade com o juiz que o recolheu a um asilo). Mas sua filha Hazel = tinha=20 apenas 23 anos quando sua infelicidade tornou-se = insuport=C3=A1vel, gra=C3=A7as =C3=A0=20 crueldade de um estudante universit=C3=A1rio, Pete Dean, = desapontado com a=20 sensaboria de um encontro =C3=A0s cegas. Ficamos sabendo muita = coisa sobre o=20 autocastrado Gradus, mas pouqu=C3=ADssimo sobre Pete. =C3=89 = prov=C3=A1vel que n=C3=A3o fosse=20 nenhum monstro, quem sabe at=C3=A9 um rapaz decente, um tanto = ego=C3=ADsta e afoito=20 -algu=C3=A9m muito parecido conosco. N=C3=B3s mesmos talvez = tenhamos sido um pouco=20 ego=C3=ADstas e afoitos ao esquecer a fam=C3=ADlia Shade t=C3=A3o = rapidamente, mas n=C3=A3o=20 foi correto da parte de Nabokov embrulhar-nos tanto tempo com = aqueles=20 mo=C3=A7os floridos, aqueles paladinos da Rosa Negra, toda aquela = conversa=20 fabulosa sobre Zembla.

Crueldades
Seja como = for, os=20 Shade n=C3=A3o s=C3=A3o muito mais reais que Zembla. Afinal de = contas, Hazel =C3=A9 um=20 personagem de fic=C3=A7=C3=A3o. Por que a crueldade de Pete Dean = deveria ser mais=20 dolorida do que a crueldade de Charles, o Bem-Amado, para com a = p=C3=A1lida=20 rainha Disa? Pois, assim como Disa e, de resto, o pr=C3=B3prio = Charles Xavier,=20 n=C3=A3o eram mais que cria=C3=A7=C3=B5es ficcionais do = ensandecido professor Kinbote, do=20 mesmo modo Hazel n=C3=A3o =C3=A9 mais que a cria=C3=A7=C3=A3o de = um professor exilado de=20 literatura russa e inglesa, sujeito esquisito, dado a truques e = fantasias,=20 de nome Nabokov, um professor cuja semelhan=C3=A7a com Kinbote = =C3=A9 patente no=20 final do livro. Sa=C3=ADmos ofuscados dali, fugindo ao som do pano = de fundo=20 sendo rasgado =C3=A0s nossas costas, tentando nos livrar da coisa = toda como de=20 um amontoado de truques impingidos a n=C3=B3s por um = egoman=C3=ADaco exilado. Foi o=20 que a maioria dos resenhadores de "Fogo P=C3=A1lido" tentou fazer. = Mas tal=20 estrat=C3=A9gia n=C3=A3o funciona. Pois agora o mundo real recebeu = um pequeno golpe,=20 bem ali onde nos esquecemos de Hazel. Mas esse esquecimento = n=C3=A3o foi uma=20 fantasia. Foi t=C3=A3o real quanto n=C3=B3s. O golpe foi desferido = pela imagina=C3=A7=C3=A3o=20 de Nabokov, mas s=C3=B3 foi poss=C3=ADvel com nossa = participa=C3=A7=C3=A3o entusi=C3=A1stica.=20 Quando lemos pela primeira vez "Lolita" ou "Fogo P=C3=A1lido" ou = "Pnin",=20 podemos rir do come=C3=A7o ao fim de cada uma dessas = hist=C3=B3rias prodigiosas. Mas=20 sa=C3=ADmos das p=C3=A1ginas finais de cada um desses romances = co=C3=A7ando a cabe=C3=A7a,=20 perguntando-nos se estamos bem, se gostamos de n=C3=B3s mesmos. = Nesses tr=C3=AAs=20 romances, Nabokov disp=C3=B5e as coisas de tal modo que = fa=C3=A7amos uma alian=C3=A7a com=20 um determinado personagem (Humbert, Kinbote ou qualquer um dos = colegas=20 desdenhosos de Pnin) contra algu=C3=A9m que esse mesmo personagem = trata=20 cruelmente. Ele tamb=C3=A9m cuida que pensemos estar ombro a ombro = com o=20 pr=C3=B3prio Nabokov, com esse escritor t=C3=A3o brilhante, que = nos est=C3=A1=20 proporcionando t=C3=A3o bons momentos, cujo engenho nos =C3=A9 = fonte de tanto=20 deleite est=C3=A9tico. Mas, em todos esses casos, percebemos no = final do livro=20 que seria melhor n=C3=A3o nutrir sentimentos t=C3=A3o calorosos = por esse personagem=20 com quem estivemos perambulando e cuja companhia parecia t=C3=A3o = agrad=C3=A1vel. E=20 isso nos faz pensar se nossa rela=C3=A7=C3=A3o com Nabokov =C3=A9 = t=C3=A3o transparente quanto=20 pens=C3=A1vamos. Come=C3=A7amos a ter a terr=C3=ADvel = sensa=C3=A7=C3=A3o de que talvez Nabokov n=C3=A3o=20 goste tanto assim de n=C3=B3s assim como n=C3=A3o gostava dos = personagens a quem nos=20 apresentou. Mas valeria ter-nos identificado a outra gente -Shade, = Lolita,=20 Pnin- antes que fosse tarde demais.

Palha=C3=A7o = an=C3=B4nimo=20
Nosso arrependimento s=C3=B3 faz crescer quando ouvimos = Nabokov dizer a=20 um entrevistador: "Faz pouco tempo, um palha=C3=A7o an=C3=B4nimo, = escrevendo sobre=20 "Fogo P=C3=A1lido" numa revista de Nova York, tomou por minhas as = declara=C3=A7=C3=B5es=20 do comentador que inventei no livro...". Talvez n=C3=A3o nos = tenhamos sa=C3=ADdo=20 melhor que esse palha=C3=A7o an=C3=B4nimo? Ser=C3=A1 isso o que = Nabokov queria que=20 sent=C3=ADssemos? Sendo assim, ele =C3=A9 de fato t=C3=A3o = insidiosamente cruel, t=C3=A3o=20 ego=C3=ADsta e indiferente quanto seus personagens mais sedutores, = n=C3=A3o? N=C3=A3o.=20 Nabokov =C3=A9 um autor t=C3=A3o gentil e generoso quanto foi na = vida real. Muito=20 embora n=C3=A3o tenha a menor vontade de se reunir a n=C3=B3s para = comes e bebes=20 depois de tirar sua maquiagem de Pr=C3=B3spero, ele tampouco = est=C3=A1 interessado=20 em nos passar uma rasteira. Ele sabe muito bem que, daqui a alguns = dias,=20 estaremos mais felizes e seremos mais s=C3=A1bios por termos = sofrido um pequeno=20 golpe. Massageando esse golpe com mais tranq=C3=BCilidade, = perceberemos que,=20 como ele e como todos mais, n=C3=B3s tamb=C3=A9m temos nosso lado = Shade e nosso lado=20 Kinbote. O lado que sente compaix=C3=A3o por Hazel e Lolita e o = lado que as=20 esquece, o lado que sente pena das dificuldades de Pnin com a = l=C3=ADngua=20 inglesa e o lado que as acha divertidas =C3=A0s pampas. Quem tiver = esses dois=20 lados em si mesmo pode muito bem se tornar mais gentil e generoso = ao=20 reconhecer sua pr=C3=B3pria duplicidade. Quanto mais vezes lemos = "Fogo P=C3=A1lido"=20 e quanto mais vezes o lemos no contexto dos demais livros de = Nabokov, mais=20 claramente percebemos que cada um desses lados s=C3=B3 emerge = =C3=A0 luz do outro:=20 Shade n=C3=A3o seria plenamente vis=C3=ADvel sem Kinbote, nem = Kinbote sem Shade. No=20 final da entrevista citada acima, o jornalista comenta que = "=C3=A0s vezes me=20 parece que nos seus romances, em "Riso no Escuro", por exemplo , = h=C3=A1 um=20 tra=C3=A7o de perversidade que chega =C3=A0s raias da crueldade". = Ele respondeu:=20 "N=C3=A3o sei. Talvez. =C3=89 claro que alguns de meus personagens = s=C3=A3o bem bestiais,=20 mas n=C3=A3o me importo muito, est=C3=A3o fora de meu =C3=ADntimo, = feito monstros=20 arrependidos na fachada de uma catedral -dem=C3=B4nios colocados = ali apenas=20 para mostrar que tomaram uma sova. Na verdade, eu sou um senhor = af=C3=A1vel que=20 abomina a crueldade".

Beleza e compaix=C3=A3o =
Nabokov=20 tornou-se mais af=C3=A1vel =C3=A0 medida que envelhecia, escrevia = mais romances e=20 dava sovas em mais e mais dem=C3=B4nios. Escreveu "Fogo = P=C3=A1lido" quando tinha a=20 idade de Shade, 61, e conferiu a Shade uma esp=C3=A9cie de = generosidade que n=C3=A3o=20 soubera dar, 25 anos antes, a Fi=C3=B3dor Godunov-Tcherdintsev (em = "O Dom").=20 Quando Kinbote pede uma senha a Shade, este lhe diz = "compaix=C3=A3o". Nesse=20 caso, podemos ter certeza de que Shade fala por seu criador, que, = nas suas=20 "Confer=C3=AAncias de Literatura", escrevera: "Beleza e = compaix=C3=A3o =C3=A9 o mais=20 perto que chegaremos de uma defini=C3=A7=C3=A3o da arte". =C3=89 = tentador afirmar que=20 Kinbote dava-se bem com a beleza, e Shade, com a compaix=C3=A3o, e = ainda que=20 vincular a obra dos dois homens produziu o que McCarthy declarou = ser "uma=20 das grandes obras de arte do s=C3=A9culo 20". Mas isso seria = simplista demais.=20 Shade sa=C3=ADa-se muito bem com a beleza: h=C3=A1 versos = maravilhosos espalhados em=20 "Fogo P=C3=A1lido". Kinbote comiserava-se ferozmente por Disa, = ainda que apenas=20 em seus sonhos, e estava certo ao dizer que "Hazel Shade = parecia-se comigo=20 sob certos aspectos" (e n=C3=A3o apenas pela tend=C3=AAncia = suicida).
As rela=C3=A7=C3=B5es=20 entre Kinbote e Shade e entre suas contrapartidas dentro de = n=C3=B3s n=C3=A3o s=C3=A3o de=20 mera oposi=C3=A7=C3=A3o. S=C3=A3o dial=C3=A9ticas, t=C3=A3o = dial=C3=A9ticas quanto as rela=C3=A7=C3=B5es entre as=20 nossas primeira, segunda e terceira leituras de "Fogo = P=C3=A1lido". Nabokov n=C3=A3o=20 estava interessado em imitar a realidade; queria = transform=C3=A1-la,=20 transformando a si mesmo e a seus leitores em pessoas capazes de = sentir e=20 fazer coisas que n=C3=A3o saberiam sentir e fazer antes. = Tamb=C3=A9m n=C3=A3o estava=20 interessado em nos trapacear. Os seus "truques" eram os = transbordamentos=20 ebulientes de uma mente bem mais =C3=A1gil e bem mais armada do = que a nossa.=20 Nabokov n=C3=A3o tinha interesse ou necessidade de = admira=C3=A7=C3=A3o. Queria aprimorar=20 a si e a seus leitores, aumentando a intensidade das trocas = dial=C3=A9ticas=20 entre os dois lados da sua e da nossa natureza: o lado que se = exalta=20 diante da beleza e das fantasias que a beleza gera e o lado que se = dilacera diante do sofrimento dos indefesos.
Aqueles que julgam = a=20 fantasia irrelevante para o senso moral n=C3=A3o poder=C3=A3o = aceitar a defini=C3=A7=C3=A3o=20 nabokoviana de arte. Talvez cheguem a duvidar de que Nabokov = acreditasse=20 em sua pr=C3=B3pria defini=C3=A7=C3=A3o, pois dificilmente = conseguir=C3=A3o v=C3=AA-lo como mais do=20 que um ego=C3=ADsta enamorado de seu pr=C3=B3prio brilho = estil=C3=ADstico. Pensar=C3=A3o ainda=20 que, a fim de inspirar compaix=C3=A3o, n=C3=A3o precisamos nem = queremos estilo,=20 engenho e perfei=C3=A7=C3=A3o formal: o est=C3=A9tico s=C3=B3 pode = nos distanciar do moral.=20 Dir=C3=A3o ainda que precisamos ser t=C3=A3o realistas quanto for = poss=C3=ADvel; n=C3=A3o=20 queremos fazer press=C3=A3o contra a realidade, mas sim = respeit=C3=A1-la, na forma=20 que a moralidade prescreve que respeitemos os sentimentos alheios = -devemos=20 observar as pessoas tais como elas s=C3=A3o, e n=C3=A3o = imagin=C3=A1-las.
Mas Nabokov=20 recorda-nos de que s=C3=B3 podemos respeitar o que somos capazes = de notar, e=20 muitas vezes =C3=A9 dif=C3=ADcil notar o sofrimento alheio. E ele = ainda aponta a=20 raz=C3=A3o dessa dificuldade: passamos boa parte do tempo = inventando pessoas,=20 em vez de not=C3=A1-las, metamorfoseando pessoas reais em = personagens de=20 hist=C3=B3rias que contamos a n=C3=B3s mesmos sobre n=C3=B3s = mesmos, sobre nossa beleza e=20 singularidade. Quanto mais dotes po=C3=A9ticos tivermos, melhores = fabuladores=20 seremos e menor ser=C3=A1 nossa capacidade de notar o sofrimento = dos=20 outros.
No caso extremo de pessoas fabulosamente dotadas e = capazes de=20 jamais deixar que o sofrimento alheio se intrometa nas = hist=C3=B3rias que=20 contam, tais hist=C3=B3rias podem se tornar verdadeiramente = prodigiosas. Ser=C3=A3o=20 hist=C3=B3rias =C3=A0 fei=C3=A7=C3=A3o da que Kinbote conta sobre = Charles Xavier ou da que=20 Humbert conta sobre aqueles raros esp=C3=ADritos capazes de = detectar uma=20 ninfeta -"dem=C3=B4nio imortal em forma de crian=C3=A7a"- =C3=A0 = primeira vista;=20 hist=C3=B3rias que tornam imposs=C3=ADvel ao leitor enredado = recordar que John Shade=20 tem outros assuntos para seus poemas al=C3=A9m de Zembla ou que = Lolita =C3=A9 uma=20 crian=C3=A7a.
Nabokov era o esp=C3=ADrito mais singular que se = possa imaginar: um=20 poeta de dons fabulosos, cuja capacidade de notar o sofrimento = alheio=20 crescia =C3=A0 medida que fazia uso de seus dons. Ele percebeu que = a melhor=20 forma de fazer seus leitores notarem o sofrimento alheio consistia = em=20 exibi-lo por um momento, depois for=C3=A7=C3=A1-los a esquecer = tudo por um bom=20 tempo, para enfim traz=C3=AA-lo novamente =C3=A0 tona justo quando = o leitor estava=20 perfeitamente enredado pela pura beleza da fantasia, pela pura = alegria da=20 prosa. Nabokov sabia muito bem que a arte pode ser uma = distra=C3=A7=C3=A3o dos=20 imperativos da moralidade, mas tamb=C3=A9m sabia que ela pode ser, = ao menos=20 para alguns de n=C3=B3s, o melhor meio de aprimoramento = moral.
Pois, mesmo=20 que a beleza possa afastar a compaix=C3=A3o, ela tamb=C3=A9m pode = suscitar uma=20 compaix=C3=A3o de intensidade previamente inimagin=C3=A1vel: = quanto mais bela a=20 hist=C3=B3ria que nos fez esquecer, maior ser=C3=A1 a = compaix=C3=A3o que por fim=20 recordamos. A imagem de um garoto que tenta salvar o irm=C3=A3o = das pedras que=20 os demais colegas de escola lhe atiram ser=C3=A1 sempre uma imagem = familiar em=20 muitos pa=C3=ADses, mas menos freq=C3=BCente naqueles onde se = l=C3=AAem romances.


Richard Rorty =C3=A9 fil=C3=B3sofo e = professor na Universidade=20 Stanford (EUA). =C3=89 autor de "Para Realizar a Am=C3=A9rica" = (DP&A) e "Ensaios=20 sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumar=C3=A1). Uma vers=C3=A3o = ampliada deste=20 artigo foi publicada como introdu=C3=A7=C3=A3o =C3=A0 = edi=C3=A7=C3=A3o da Everyman's Library (EUA)=20 de "Fogo P=C3=A1lido" .
Tradu=C3=A7=C3=A3o de Samuel Titan = Jr.


Fogo P=C3=A1lido
304 p=C3=A1gs., R$ = 42,50 de Vladimir=20 Nabokov. Trad. Jorio Dauster e S. Duarte. Companhia das Letras (r. = Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, S=C3=A3o Paulo, SP, = tel.=20 = 0/xx/11/3707-3500).


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A NINFETA FEIA=20

ENSA=C3=8DSTA DISCUTE SE VLADIMIR NABOKOV TERIA SE = APROPRIADO DE CONTO DE=20 UM AUTOR QUASE DESCONHECIDO PARA COMPOR "LOLITA", UM DOS = PRINCIPAIS=20 ROMANCES DO S=C3=89CULO 20

por Michael = Maar

Voc=C3=AA j=C3=A1=20 n=C3=A3o ouviu isso antes? O narrador na primeira pessoa, um homem = culto de=20 meia-idade, relembra a hist=C3=B3ria de um "amour fou" passado. = Tudo come=C3=A7a=20 quando, durante viagem ao exterior, ele aluga um quarto em uma = casa de=20 fam=C3=ADlia. No instante em que v=C3=AA a filha da fam=C3=ADlia, = se apaixona=20 perdidamente. Ela =C3=A9 uma pr=C3=A9-adolescente cujos encantos o = escravizam=20 imediatamente. Ignorando sua idade terna, ele se torna =C3=ADntimo = dela. No=20 final ela morre, e o narrador, marcado para sempre pela garota, = permanece=20 s=C3=B3. O nome da menina d=C3=A1 t=C3=ADtulo =C3=A0 = hist=C3=B3ria: "Lolita".
Conhecemos a=20 menina e sua hist=C3=B3ria, conhecemos o t=C3=ADtulo. Pensamos = tamb=C3=A9m conhecer o=20 autor, mas nos enganamos. Seu nome era Heinz von = Lichberg.
"Lolita", de=20 Von Lichberg, =C3=A9 um conto de 18 p=C3=A1ginas publicado em = 1916, 40 anos antes de=20 seu hom=C3=B4nimo famoso. A hist=C3=B3ria =C3=A9 obra de um autor = alem=C3=A3o de 25 anos que=20 praticamente n=C3=A3o deixou rastro nos arquivos liter=C3=A1rios. = Mesmo em termos=20 bibliogr=C3=A1ficos, ela =C3=A9 bem camuflada: "Lolita" est=C3=A1 = escondida dentro de um=20 volume intitulado "The Accursed Gioconda" [A Gioconda Maldita]. = =C3=89 o nono=20 da colet=C3=A2nea de 15 contos. Ainda em 1975 o livro podia ser = comprado em um=20 sebo de Berlim. =C3=89 prov=C3=A1vel que, nos anos 1920 e 1930, = fosse facilmente=20 encontr=C3=A1vel. Hoje, por=C3=A9m, s=C3=B3 =C3=A9 poss=C3=ADvel = v=C3=AA-lo em algumas poucas=20 bibliotecas universit=C3=A1rias.
Quem foi o criador da primeira = "Lolita"? O=20 autor n=C3=A3o =C3=A9 encontrado em nenhuma enciclop=C3=A9dia de = literatura. A =C3=BAnica obra=20 de refer=C3=AAncia biogr=C3=A1fica que o menciona nem sequer = acerta as datas de sua=20 vida. =C3=89 perdo=C3=A1vel, j=C3=A1 que Lichberg era um = pseud=C3=B4nimo liter=C3=A1rio. O=20 verdadeiro nome do autor era Heinz von Eschwege. Descendente de = uma=20 fam=C3=ADlia antiga de Hesse, Von Eschwege nasceu em 7 de setembro = de 1890 em=20 Marburgo, filho de um tenente-coronel da infantaria. Aos 7 anos = ele perdeu=20 sua m=C3=A3e. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi tenente da = Artilharia=20 Naval.
Nesse per=C3=ADodo, al=C3=A9m de "A Gioconda Maldita" e = de uma antologia=20 de poesia alem=C3=A3, ele publicou contribui=C3=A7=C3=B5es nos = peri=C3=B3dicos "Jugend" e=20 "Simplicissimus". Depois da guerra -durante a qual tinha sido = lan=C3=A7ado um=20 volume de seus pr=C3=B3prios poemas- ele trabalhou em Berlim, como = jornalista=20 para os jornais do Scherl-Verlag, o n=C3=BAcleo do posterior = imp=C3=A9rio Hugenberg.=20 Suas cartas traziam o cabe=C3=A7alho Eschwege-Lichberg, e ele = ainda se assinava=20 Eschwege, mas publicava seus escritos sob o nome de Heinz von=20 Lichberg.
Ao ler o conto hoje e compar=C3=A1-lo com o romance, = somos=20 dominados por uma leve sensa=C3=A7=C3=A3o de irrealidade e de = d=C3=A9j=C3=A0 vu, como se=20 tiv=C3=A9ssemos entrado em uma das hist=C3=B3rias = labir=C3=ADnticas de Borges. A parte=20 principal do conto, que possui pouco valor art=C3=ADstico, = apresenta uma viagem=20 =C3=A0 Espanha. O narrador an=C3=B4nimo, que escreve na primeira = pessoa, parte do=20 sul da Alemanha, depois de se despedir de dois irm=C3=A3os idosos, = propriet=C3=A1rios de uma taverna que ele frequenta. Ele passa por = Paris, chega=20 a Madri e, depois, Alicante. Ali ele se hospeda em uma pens=C3=A3o = =C3=A0 beira-mar.=20 Seus planos n=C3=A3o v=C3=A3o al=C3=A9m de f=C3=A9rias = tranq=C3=BCilas. Mas ent=C3=A3o algo acontece:=20 ap=C3=B3s um breve adiamento, um vislumbre primeiro e fatal que = n=C3=A3o pode deixar=20 de nos remeter =C3=A0 "Lolita" posterior [Companhia das Letras]. = Nesta, o=20 narrador na primeira pessoa Humbert Humbert faz uma viagem para = encontrar=20 um lugar calmo para trabalhar e que tenha um lago por perto. Na=20 cidadezinha de Ramsdale ele visita a propriet=C3=A1ria Charlotte = Haze, que ele=20 acha t=C3=A3o pouco atraente quanto sua casa.
Decidido, em seu = =C3=ADntimo, a=20 partir, ele acompanha a sra. Haze ao que ela descreve como a = "piazza" do=20 estabelecimento, e, de repente -"sem nenhum aviso pr=C3=A9vio, uma = onda azul=20 ergueu bem alto meu cora=C3=A7=C3=A3o"-, ele v=C3=AA a = crian=C3=A7a imortal, o renascimento de=20 seu primeiro amor de beira-mar: "Era a mesma crian=C3=A7a -os = mesmos ombros=20 fr=C3=A1geis cor de mel, as mesmas costas flex=C3=ADveis, nuas e = sedosas, os mesmos=20 cabelos castanhos".
Da mesma maneira, o narrador de Lichberg = s=C3=B3 precisa=20 de um vislumbre para se emocionar, e, da mesma maneira, a beleza = da menina=20 dele tamb=C3=A9m possui o toque sombrio de um mist=C3=A9rio do = passado.
"A pens=C3=A3o=20 administrada por Severo Acosta era uma casa pequena e torta com = balc=C3=B5es=20 grandes, apertada entre outras casas semelhantes. O dono da casa, = falador=20 e amig=C3=A1vel, me levou at=C3=A9 um quarto com uma = bel=C3=ADssima vista do mar, e n=C3=A3o=20 havia nada para me impedir de desfrutar uma semana de beleza sem=20 perturba=C3=A7=C3=B5es. At=C3=A9 o segundo dia, quando vi Lolita, = a filha de Severo. Ela=20 era muito jovem para nossos padr=C3=B5es nortistas, com sombras = sob seus olhos=20 sulistas e cabelo de uma tonalidade incomum de ruivo dourado. Seu = corpo=20 era esbelto e flex=C3=ADvel como o de um menino; sua voz, profunda = e escura."=20 Como Humbert, nosso narrador se sente imediatamente = enfeiti=C3=A7ado e abandona=20 qualquer id=C3=A9ia de partir. Sua Lolita, tamb=C3=A9m, assim como = a posterior=20 Dolores Haze, =C3=A9 sujeita a sofrer mudan=C3=A7as violentas de = estado de =C3=A2nimo.=20 Assim come=C3=A7a a descri=C3=A7=C3=A3o que Lichberg faz de uma = paix=C3=A3o enigm=C3=A1tica que=20 leva o narrador a abandonar qualquer id=C3=A9ia de partir. Lolita = =C3=A9 sujeita a=20 caprichos e estados de humor vari=C3=A1veis. Ser=C3=A1 que ela = quer algo dele ou=20 n=C3=A3o? Ser=C3=A1 que esconde segredos em sua alma de = crian=C3=A7a? Assim como no caso=20 do agradavelmente surpreso Humbert Humbert, ao final =C3=A9 Lolita = quem termina=20 por seduzir o narrador, e n=C3=A3o o contr=C3=A1rio. O autor = n=C3=A3o o afirma=20 claramente, mas suas elipses e seus rodeios n=C3=A3o deixam ao = leitor grande=20 margem de d=C3=BAvida. O texto =C3=A9 ao mesmo tempo t=C3=A3o = pouco expl=C3=ADcito e t=C3=A3o pouco=20 amb=C3=ADguo quanto cabe =C3=A0 =C3=A9poca. Os dias e noites = dedicados por um amante de=20 meia-idade =C3=A0 doce boca de uma linda ninfeta se tornaram = sexualmente=20 indecentes apenas mais tarde, com Nabokov, que primeiro pensou em = publicar=20 seu manuscrito anonimamente e, mais tarde, escapou da censura por = pouco.=20 Apesar disso, a correspond=C3=AAncia entre as tramas b=C3=A1sicas, = a perspectiva da=20 narrativa e a escolha do nome da protagonista n=C3=A3o deixa de = ser not=C3=A1vel.=20 Infelizmente, por=C3=A9m, como observa Van Veen em "Ada", n=C3=A3o = existe lei l=C3=B3gica=20 que possa nos dizer quando um n=C3=BAmero dado de = coincid=C3=AAncias deixa de ser=20 acidental. Em sua aus=C3=AAncia, n=C3=A3o existe maneira de = responder -e, =C3=A9 claro,=20 menos ainda de deixar de lado- a pergunta inevit=C3=A1vel: teria = Vladimir=20 Nabokov, autor da imortal "Lolita", o orgulhoso cisne negro da = fic=C3=A7=C3=A3o=20 moderna, tido conhecimento do patinho feio que foi seu precursor? = Poderia=20 ele -mesmo que apenas inconscientemente, j=C3=A1 que presume-se = que um citar=20 consciente teria sido impens=C3=A1vel- ter estado sob seu = est=C3=ADmulo? Seja como=20 for, Nabokov poderia facilmente ter cruzado o caminho do autor de=20 "Lolita", o conto. Heinz von Lichberg viveu durante 15 anos na = zona=20 sudoeste de Berlim, praticamente no mesmo bairro de Nabokov. = Quando=20 crian=C3=A7a, Nabokov passou por Berlim v=C3=A1rias vezes, quando = sua fam=C3=ADlia estava=20 a caminho da Fran=C3=A7a. Um ano depois de a fam=C3=ADlia fugir da = R=C3=BAssia, em 1919,=20 seus pais e irm=C3=A3os se mudaram para o distrito de Grunewald, = em Berlim,=20 onde Vladimir os visitava em suas f=C3=A9rias de Cambridge. Em = mar=C3=A7o de 1922=20 seu pai foi assassinado por um monarquista russo no Teatro da = Filarm=C3=B4nica=20 de Berlim. Naquele ver=C3=A3o, Vladimir se mudou da Inglaterra = para Berlim e=20 -algo que n=C3=A3o poderia ter previsto- permaneceu ali at=C3=A9 = 1937. Naqueles 15=20 anos em Berlim ele ficou noivo de uma alem=C3=A3 e se separou = dela; conheceu=20 Vera Slonim, casou-se com ela e tornou-se pai de um filho e, = al=C3=A9m disso,=20 tornou-se Sirin, o escritor russo de maior destaque da = gera=C3=A7=C3=A3o jovem da=20 =C3=A9poca. Em Berlim ele escreveu nada menos que nove romances = russos, e tinha=20 quase conclu=C3=ADdo o d=C3=A9cimo e melhor deles, "The Gift", = quando deu in=C3=ADcio a=20 sua conquista da literatura americana com "The Real Life of = Sebastian=20 Knight". Nada disso nos diz se Sirin-Nabokov pode ter lido a = "Lolita"=20 alem=C3=A3. No que diz respeito a seus conhecimentos de assuntos = alem=C3=A3es,=20 Nabokov sempre se manteve reticente, quando n=C3=A3o o negava = simplesmente. Ele=20 deixava subentendido que, isolando-se dentro da comunidade de = exilados=20 russos para evitar perder sua l=C3=ADngua-m=C3=A3e, ele quase = n=C3=A3o falava o alem=C3=A3o e=20 n=C3=A3o lia livros alem=C3=A3es. De fato, Nabokov nunca chegou = perto de dominar o=20 alem=C3=A3o como fazia com o franc=C3=AAs. Mas n=C3=A3o estava = mentindo quando, no pedido=20 que fez para obter uma bolsa de estudos Guggenheim, em 1947, = afirmou ter=20 "conhecimento razo=C3=A1vel do alem=C3=A3o". De qualquer maneira, = seria inimagin=C3=A1vel=20 que um g=C3=AAnio poliglota como ele pudesse viver em um pa=C3=ADs = por tanto tempo=20 sem alcan=C3=A7ar pelo menos um comando passivo de sua = l=C3=ADngua. E sua antipatia=20 posterior -e eminentemente compreens=C3=ADvel- pelos alem=C3=A3es = n=C3=A3o impediu que=20 seu "conhecimento razo=C3=A1vel" da l=C3=ADngua deles se = estendesse a suas letras.=20 Seu coment=C3=A1rio sobre "Eug=C3=AAnio Oni=C3=A9guin", de = Puchkin, por si s=C3=B3 revela uma=20 erudi=C3=A7=C3=A3o especialista que nem todo germanista seria = capaz de demonstrar.=20 Nabokov n=C3=A3o apenas tinha familiaridade com os rom=C3=A2nticos = e cl=C3=A1ssicos=20 alem=C3=A3es como sua obra =C3=A9 pontilhada de alus=C3=B5es = =C3=A0 literatura alem=C3=A3.=20

A c=C3=A9lula original
Ele valorizava ao = extremo Goethe e=20 Hofmannsthal, respeitava Kafka e desprezava Thomas Mann (cujo "A = Montanha=20 M=C3=A1gica" estudou com a ajuda de um dicion=C3=A1rio). Ele = traduziu para o russo=20 v=C3=A1rios poemas de Heine e a "dedicat=C3=B3ria" do "Fausto", de = Goethe. Existem=20 indicativos de que tenha lido Schopenhauer no original. Materiais = menos=20 corriqueiros tamb=C3=A9m entravam em seu campo de vis=C3=A3o: o = material de base de=20 seu romance "Despair" saiu de jornais alem=C3=A3es, e em um de = seus contos ele=20 lan=C3=A7ou uma farpa contra "Bruder und Schwester", de Leonhard = Frank, =C3=A0s=20 vezes visto como a fonte de "Ada".
Algu=C3=A9m que tivesse = conhecimento de=20 Leonhard Frank com certeza poderia ter topado com Heinz von = Lichberg. N=C3=A3o=20 como romancista, mas como jornalista do "Berliner Tages-Anzeiger", = Lichberg estava permanentemente presente durante os 15 anos em que = Nabokov=20 viveu em Berlim. No entanto, supondo -digamos, gra=C3=A7as a uma = dessas=20 coincid=C3=AAncias mais freq=C3=BCentes na vida do que devem ser = em qualquer=20 romance- que a cole=C3=A7=C3=A3o de "grotescos" do autor = alem=C3=A3o tenha ca=C3=ADdo nas m=C3=A3os=20 do escritor russo, teria Nabokov se interessado pelo tema de = "Lolita" j=C3=A1=20 naquele momento de sua vida?
Sim, com certeza. Vinte anos antes = de=20 concluir seu pr=C3=B3prio romance sobre o tema, ele j=C3=A1 = inclu=C3=ADra um esbo=C3=A7o dele=20 na boca de um personagem secund=C3=A1rio. "Ah, se eu tivesse um ou = dois=20 instantes de tempo", suspira o senhorio do protagonista em "The = Gift",=20 "que romance eu seria capaz de redigir!".
"Imagine algo assim: = um=20 sujeito velho -mas ainda no vigor dos anos, fogoso, sedento de = felicidade-=20 conhece uma vi=C3=BAva, e ela tem uma filha, ainda uma menininha = -voc=C3=AA sabe o=20 que quero dizer-, em quem nada =C3=A9 formado ainda, mas que = possui um jeito de=20 andar que deixa voc=C3=AA louco, fora de si. Uma garota = mi=C3=BAda, esbelta, muito=20 loira, p=C3=A1lida, com sombras azuis sob os olhos -e, =C3=A9 = claro, ela nem sequer=20 olha para o velho safado. O que fazer? Bem, sem perder muito tempo = pensando, ele se casa com a vi=C3=BAva. OK. Eles v=C3=A3o viver = juntos, os tr=C3=AAs.=20 Assim se pode continuar por tempo indefinido -a = tenta=C3=A7=C3=A3o, o tormento=20 eterno, a =C3=A2nsia, as esperan=C3=A7as loucas." E assim Nabokov = de fato continuou,=20 escrevendo, cinco anos mais tarde, em Paris, a novela "The = Enchanter", em=20 que a c=C3=A9lula original de "Lolita" j=C3=A1 forma um = embri=C3=A3o completo.
Dez=20 anos depois ele come=C3=A7ou a compor o romance, que, apesar das = tenta=C3=A7=C3=B5es do=20 incinerador, concluiu vitoriosamente em Ithaca, na primavera de = 1954.
=C3=89=20 interessante, por=C3=A9m, que Lolita, embora surja t=C3=A3o = precocemente como figura=20 e como tema, como nome surja apenas bem mais tarde. Nabokov disse = ao=20 primeiro comentarista de "Lolita", Alfred Appel Jr., que = originalmente=20 tencionou chamar sua hero=C3=ADna de Virg=C3=ADnia e intitular o = livro "Ginny". No=20 manuscrito, ela teve durante muito tempo o nome Juanita Dark. Foi = apenas=20 mais tarde que Nabokov descobriu mil raz=C3=B5es pelas quais o = nome Lolita, com=20 o qual o livro come=C3=A7a e termina, se tornara essencial. De que = profundezas=20 de semiconsci=C3=AAncia ou criptomn=C3=A9sia p=C3=B4de o nome, = atra=C3=ADdo por alguma isca=20 nova, ter ascendido =C3=A0 superf=C3=ADcie?
A figura de Lolita, = em si, possui=20 tanta semelhan=C3=A7a com sua precursora hispano-germ=C3=A2nica = quanto qualquer=20 menina pode ter com outra. Elas n=C3=A3o s=C3=A3o g=C3=AAmeas, de = maneira alguma, e a=20 semelhan=C3=A7a entre elas =C3=A9 passageira -t=C3=A3o passageira = quanto o perfume do=20 p=C3=B3-de-arroz espanhol que percorre o primeiro amor de Humbert. = Em ambos os=20 casos Lolita =C3=A9 um diminutivo de Lola, em um caso de origem = espanhola e, no=20 outro, mexicana. Existe tamb=C3=A9m, como Appel observou, um = tra=C3=A7o alem=C3=A3o na=20 Lola de Nabokov. A "femme fatale" desse nome que aparece no filme = "O Anjo=20 Azul" [1930], de Sternberg, era representada por Marlene Dietrich, = a quem=20 Humbert certa vez compara a m=C3=A3e de Lolita. Ao partir, ele = chega a cham=C3=A1-la=20 de Marlene e, em outra ocasi=C3=A3o, de Lotte, enquanto o = sobrenome dela, Haze,=20 =C3=A9 semelhante ao alem=C3=A3o Hase (coelhinha), como Nabokov = confidenciou a um=20 entrevistador da revista "Playboy" -talvez apenas para lisonjear a = revista. O fato de Humbert certa vez chamar sua Lolita de "die = Kleine"=20 integra o mesmo pano de fundo espantosamente consistente. Nada = disso,=20 entretanto, aponta necessariamente para a Lolita primeira, de = Lichberg.=20 Entre as semelhan=C3=A7as entre a "Kleine" de 1916 e a de 1954, = que certamente=20 existem, uma delas, de qualquer maneira, diz respeito muito mais = =C3=A0=20 "Ur-Lolita" pr=C3=B3pria de Nabokov. Lichberg dirige seu foco = narrativo desde o=20 in=C3=ADcio para o corpo esbelto de Lolita, "como o de um menino". = Do mesmo=20 modo, a primeira descri=C3=A7=C3=A3o que Humbert faz de Lolita, = quando ela traz de=20 volta a imagem de sua paix=C3=A3o infantil =C3=A0 beira-mar, canta = seus "quadris=20 pueris". Em v=C3=A1rios momentos Nabokov, sem que isso d=C3=AA na = vista, a veste em=20 roupas de menino; em uma ocasi=C3=A3o Humbert a chama de "mon = petit", em outro=20 ele fala, embevecido, de seus "lindos joelhos de menino". Humbert = n=C3=A3o est=C3=A1=20 citando Heinz von Lichberg, mas um jovem chamado Erwin. Pois a=20 pr=C3=A9-hist=C3=B3ria de Lolita tem origens mais distantes do que = "The Gift". A=20 primeira apari=C3=A7=C3=A3o de uma menina ainda n=C3=A3o formada, = cujo andar =C3=A9 capaz de=20 enlouquecer um homem de idade madura, ocorre no conto "A Nursery = Tale"=20 (1926), de Nabokov. Na companhia de um velho poeta -em que, anos = depois,=20 Nabokov, para sua pr=C3=B3pria surpresa, identificaria um = antecessor de=20 Humbert-, uma crian=C3=A7a-mulher passa por Erwin, que, ele = pr=C3=B3prio, n=C3=A3o deixa=20 de ter alguns pendores humbertianos, embora seja apreciador = especial de=20 "gar=C3=A7ons manqu=C3=A9s". "The Nursery Tale" n=C3=A3o =C3=A9 o = tipo de f=C3=A1bula que os irm=C3=A3os=20 Grimm ou Hans Christian Andersen nos convidariam a apreciar.=20

Seq=C3=BC=C3=AAncia de pr=C3=A9-Lolitas
Sua = trama, tratada com=20 eleg=C3=A2ncia, brinca com uma fantasia masculina cl=C3=A1ssica. O = diabo se oferece=20 para realizar os t=C3=ADmidos sonhos er=C3=B3ticos de Erwin. Ele = ter=C3=A1 um dia no=20 qual, por meio de seu comando mental, poder=C3=A1 escolher um = n=C3=BAmero ilimitado=20 de garotas para serem suas parceiras de folguedos. A d=C3=A9cima = segunda e=20 =C3=BAltima de suas concubinas =C3=A9 uma crian=C3=A7a de cerca de = 14 anos que aparece=20 num vestido preto decotado: "Havia algo de bizarro nesse rosto, = bizarro=20 era o olhar fugaz de seus olhos muito brilhantes demais, e, se ela = n=C3=A3o=20 fosse apenas uma menininha -a neta do velho, sem d=C3=BAvida-, = poder-se-ia=20 desconfiar que seus l=C3=A1bios tinham sido retocados com ruge. = Ela caminhava=20 rebolando os quadris muito, muito levemente; suas pernas se = aproximavam=20 mais, ela perguntava algo a seu companheiro em voz alta -e, embora = Erwin=20 n=C3=A3o tivesse dado nenhum comando mental, sabia que seu = r=C3=A1pido sonho secreto=20 tinha sido realizado".
Aqui, sem d=C3=BAvida, temos a primeira = de uma=20 seq=C3=BC=C3=AAncia de pr=C3=A9-Lolitas, uma cadeia que, desse = momento em diante, n=C3=A3o=20 mais ser=C3=A1 rompida. Ela ainda n=C3=A3o tem nome, mas j=C3=A1 = =C3=A9 uma ninfeta fatal,=20 como Nabokov a descreveria mais tarde.
E, desde o in=C3=ADcio, = com sua=20 primeira apari=C3=A7=C3=A3o em sua obra, a figura revela = tra=C3=A7os=20 demon=C3=ADaco-fantasmag=C3=B3ricos, aos quais o jovem autor ainda = faz refer=C3=AAncia,=20 sem se precaver. Erwin =C3=A9 convocado =C3=A0 "rua Hoffman" = =C3=A0 meia-noite, por um=20 dem=C3=B4nio. N=C3=A3o h=C3=A1 como deixar passar despercebida a = alus=C3=A3o de Nabokov: os=20 contos fant=C3=A1sticos do rom=C3=A2ntico alem=C3=A3o E.T.A. = Hoffman interligam=20 imperceptivelmente o sonho e a realidade demon=C3=ADaca. Brian = Boyd descreve=20 "The Nursery Tale" como sendo "propositalmente = hoffmanesco".
Mas desse=20 mastro liter=C3=A1rio corre um fio de seda que o liga ao "Lolita" = alem=C3=A3o. N=C3=A3o=20 ao final, mas j=C3=A1 em sua primeira ora=C3=A7=C3=A3o, o conto de = Lichberg indica o=20 modelo em cuja tradi=C3=A7=C3=A3o ele se enxerga: "Algu=C3=A9m = atirou o nome de E.T.A.=20 Hoffman na conversa. Novelas musicais".
Em companhia = agrad=C3=A1vel, a=20 conversa passa a girar em torno das rela=C3=A7=C3=B5es entre arte = e realidade,=20 introduzindo uma narrativa interior. =C3=89 essa a = introdu=C3=A7=C3=A3o convencional =C3=A0=20 hist=C3=B3ria de Lichberg -um artif=C3=ADcio do qual o = pr=C3=B3prio Nabokov, quando=20 jovem, nem sempre se abstinha. A senhora da casa diz ao jovem = escritor=20 presente: "Voc=C3=AA acha poss=C3=ADvel que essas coisas, sobre as = quais eu=20 raramente chego mesmo a ler, possam me manter acordada =C3=A0 = noite? Minha=20 raz=C3=A3o me diz que s=C3=A3o apenas fantasias, e, no entanto..." = "=C3=89 porque n=C3=A3o s=C3=A3o=20 apenas fantasia, condessa!" O diplomata deu um sorriso = bem-humorado. "Mas=20 voc=C3=AA n=C3=A3o est=C3=A1 querendo dizer que Hoffman viveu = esses terrores!" "=C3=89=20 exatamente isso o que quero dizer", respondeu o escritor, "ele os = viveu,=20 sim. N=C3=A3o, =C3=A9 claro, com suas m=C3=A3os e seus olhos. Mas, = como era escritor, ele=20 viveu o que escreveu -ou, melhor dizendo, escreveu apenas aquilo = que j=C3=A1=20 vivera espiritualmente...'".
=C3=89 a deixa para a = interven=C3=A7=C3=A3o de outro=20 ouvinte, um professor universit=C3=A1rio que, at=C3=A9 esse = momento, se mantivera em=20 sil=C3=AAncio. Ele quer relatar algo que pesa sobre sua mente = h=C3=A1 anos e que ele=20 ainda n=C3=A3o sabe se foi experi=C3=AAncia ou fantasia. Assim = come=C3=A7a a narrativa=20 real de uma hist=C3=B3ria altamente hoffmanesca, uma hist=C3=B3ria = cujo n=C3=BAcleo=20 encerra justamente o tema que germinou na fic=C3=A7=C3=A3o de = Nabokov dos anos 20 em=20 diante.
Eis a base da hist=C3=B3ria. Na cidade do sul da = Alemanha onde=20 estuda, o narrador entra em uma taverna pertencente a dois = irm=C3=A3os idosos e=20 estranhos, com barbas revoltas, ruivas com tons grisalhos. Ele se = senta =C3=A0=20 mesa deles, recebe vinho espanhol para tomar e v=C3=AA um = len=C3=A7o de cabe=C3=A7a de=20 seda preta em uma cadeira pr=C3=B3xima, do tipo que as garotas = espanholas usam=20 em dias de festa. Ocorre a ele que algo fora do comum pode estar=20 acontecendo no lugar, mas ele n=C3=A3o pensa mais no assunto. = Certa noite, ao=20 passar pela taverna, ele ouve vozes jovens iradas, alteradas, uma = briga=20 violenta e um grito de pavor sa=C3=ADdo da boca de uma mulher. Na = manh=C3=A3=20 seguinte, por=C3=A9m, tudo no estabelecimento dos dois irm=C3=A3os = parece t=C3=A3o normal=20 que ele coloca sua experi=C3=AAncia em d=C3=BAvida e tem vergonha = de perguntar a=20 eles sobre o que ouviu. Pouco depois ele parte em viagem =C3=A0 = Espanha, na=20 qual conhecer=C3=A1 Lolita, e o leitor descobrir=C3=A1 a = solu=C3=A7=C3=A3o do=20 mist=C3=A9rio.
Lichberg batizou seus contos de "grotescos". A = descri=C3=A7=C3=A3o n=C3=A3o=20 cai bem em sua "Lolita", que recebe tratamento mais condizente com = um=20 conto g=C3=B3tico ou mesmo com as hist=C3=B3rias de fantasmas de = Hoffman. Nabokov=20 n=C3=A3o estava acima de escrever romances fantasmag=C3=B3ricos ao = estilo de=20 Hoffman. Al=C3=A9m da chamada "dimens=C3=A3o espectral" que = j=C3=A1 foi detectada em sua=20 obra, ele n=C3=A3o tinha receios em aderir a esse g=C3=AAnero = resistente.
Quando=20 tinha a mesma idade em que Lichberg inventou sua = crian=C3=A7a-mulher espanhola,=20 Nabokov-Sirin escreveu "La Veneziana", uma hist=C3=B3ria que = brinca com tropos=20 dessa forma. O t=C3=ADtulo e o t=C3=B3pico desse trabalho -que = n=C3=A3o deixa de ter=20 atrativos- de sua fase inicial =C3=A9 uma pintura antiga que vem = acompanhada de=20 uma hist=C3=B3ria incomum. O quadro representa uma beldade que = possui uma=20 semelhan=C3=A7a espantosa com uma inglesa viva, mas que, na = realidade, =C3=A9 -ou=20 deve ser- uma senhora veneziana de v=C3=A1rios s=C3=A9culos = atr=C3=A1s. A semelhan=C3=A7a =C3=A9=20 t=C3=A3o espantosa que o protagonista da hist=C3=B3ria, que = est=C3=A1 apaixonado pela=20 inglesa, passa sess=C3=B5es secretas sentado diante do retrato e, = no final=20 -como na hist=C3=B3ria do pintor chin=C3=AAs-, desaparece dentro = dela.
A "Lolita"=20 de Lichberg n=C3=A3o vai t=C3=A3o longe assim. No entanto = tamb=C3=A9m com essa rela=C3=A7=C3=A3o=20 Nabokov poderia ter encontrado nela seu tema, como se fosse = espelhado. O=20 viajante na Espanha topa com um desenho na pens=C3=A3o que parece = retratar sua=20 amada. Mas a impress=C3=A3o =C3=A9 enganosa. ""Voc=C3=AA pensa que = =C3=A9 Lolita", sorriu=20 Severo, "mas =C3=A9 Lola, a av=C3=B3 da bisav=C3=B3 de Lolita, que = foi estrangulada por=20 seu amante depois de uma briga, cem anos atr=C3=A1s."'
Eis, = tamb=C3=A9m, a=20 solu=C3=A7=C3=A3o do mist=C3=A9rio: o passado. Com ele, chegamos = ao cerne da trama de=20 Lichberg. Lolita n=C3=A3o =C3=A9 apenas uma menina encantadora = qualquer: ela =C3=A9=20 amaldi=C3=A7oada e sofre de compuls=C3=A3o repetitiva = demon=C3=ADaca. O narrador fica=20 sabendo desse passado assombrado quando finalmente decide partir, = j=C3=A1=20 temendo o amor perigoso de Lolita. "Nos sentamos, e Severo contou = a=20 hist=C3=B3ria =C3=A0 sua moda amig=C3=A1vel. Ele falou de Lolita, = que, em seu tempo,=20 tinha sido uma das mulheres mais lindas da cidade, t=C3=A3o bela = que os homens=20 que a amavam tinham que morrer. Pouco ap=C3=B3s o nascimento de = sua filha, ela=20 foi assassinada por dois de seus amantes, a quem ela atormentara = at=C3=A9=20 lev=C3=A1-los =C3=A0 loucura.
E, desde ent=C3=A3o, foi como se = uma maldi=C3=A7=C3=A3o tivesse=20 sido imposta =C3=A0 fam=C3=ADlia. As mulheres sempre tinham apenas = uma filha, e=20 sempre morriam, dementes, algumas semanas depois de dar =C3=A0 luz = uma crian=C3=A7a.=20 Mas todas as meninas eram lindas, t=C3=A3o lindas quanto Lolita! = "Minha mulher=20 morreu assim", ele sussurrou em tom grave, "e minha filha = tamb=C3=A9m morrer=C3=A1.'=20 Eu mal conseguia encontrar palavras para confort=C3=A1-lo, pois o = temor por=20 minha pequena Lolita era mais forte do que todos meus outros = sentimentos.=20 Quando entrei em meu quarto, =C3=A0 noite, encontrei uma pequena = flor vermelha,=20 desconhecida para mim, sobre o travesseiro de minha cama. O = presente de=20 despedida de Lolita, pensei comigo mesmo, e a peguei em minha = m=C3=A3o. Ent=C3=A3o=20 vi que, na realidade, era branca, e que s=C3=B3 estava vermelha = por estar=20 tingida com o sangue de Lolita.


Maldi=C3=A7=C3=A3o, demonismo, compuls=C3=A3o = repetitiva: s=C3=A3o essas as=20 correntes subjacentes =C3=A0s duas lolitas


Era assim que ela amava." = Nessa noite o=20 narrador =C3=A9 testemunha de uma cena fantasmag=C3=B3rica de = assassinato. Ele pensa=20 ver como Lolita -n=C3=A3o: sua antepassada, Lola, "ou ter=C3=A1 = realmente sido=20 Lolita?"- leva dois amantes =C3=A0 f=C3=BAria e acaba sendo morta = por eles. Nos=20 assassinos, ele reconhece os g=C3=AAmeos Aloys e Anton Walzer. Na = manh=C3=A3=20 seguinte, ele descobre que Lolita morreu durante a noite. = "N=C3=A3o posso=20 descrever o que essas palavras me fizeram, e, se eu pudesse, seria = como=20 uma profana=C3=A7=C3=A3o falar disso. Minha amada Lolita, minha = pequena, estava=20 deitada em sua caminha estreita, com os olhos bem abertos. Seus = dentes=20 estavam cerrados convulsivamente sobre seu l=C3=A1bio inferior, e = seus cabelos=20 loiros e perfumados estavam revoltos." Com o cora=C3=A7=C3=A3o = partido, ele deixa a=20 Espanha no navio seguinte. "Mas a alma de Lolita eu levei comigo." = Anos=20 mais tarde, ele retorna =C3=A0 cidade do sul da Alemanha, indaga = sobre os=20 irm=C3=A3os Walzer e fica sabendo que, na manh=C3=A3 ap=C3=B3s a = noite em que Lolita=20 morreu, eles foram encontrados mortos em suas cadeiras de reclinar = ao lado=20 do fog=C3=A3o, com sorrisos amig=C3=A1veis nos rostos. = Maldi=C3=A7=C3=A3o, demonismo,=20 compuls=C3=A3o repetitiva: s=C3=A3o essas as correntes subjacentes = =C3=A0 outra "Lolita",=20 tamb=C3=A9m. A crian=C3=A7a-mulher de Nabokov tamb=C3=A9m =C3=A9 = uma "revenant", a=20 reencarna=C3=A7=C3=A3o de uma "gamine sans merci" anterior, fatal. = Annabel, sua=20 primeira paix=C3=A3o da praia, incute o desejo pelas ninfetas para = sempre em=20 Humbert. Ela lhe lan=C3=A7a um feiti=C3=A7o do qual ele s=C3=B3 = poder=C3=A1 escapar ao deixar=20 que ela reencarne em Lolita. O livro de Nabokov n=C3=A3o trata de = pedofilia,=20 mas de demonismo. Humbert vive sob uma compuls=C3=A3o = er=C3=B3tico-demon=C3=ADaca. J=C3=A1 em=20 seu "The Nursery Tale" =C3=A9 o dem=C3=B4nio quem entrega a = primeira Lolita ao=20 her=C3=B3i. Isso n=C3=A3o mudou em sua "chef d'oeuvre". De acordo = com a queixa=20 contundente de Humbert, =C3=A9 o pr=C3=B3prio dem=C3=B4nio quem o = incentiva e o faz de=20 tolo e quem, mais tarde, ter=C3=A1 que lhe dar um descanso se = quiser=20 conserv=C3=A1-lo como seu brinquedo por mais tempo. Mas n=C3=A3o = =C3=A9 apenas Humbert o=20 objeto das maquina=C3=A7=C3=B5es demon=C3=ADacas. Por sua = defini=C3=A7=C3=A3o inconfund=C3=ADvel, a=20 ninfeta n=C3=A3o =C3=A9 humana, mas demon=C3=ADaca. Lolita =C3=A9 = "o dem=C3=B4nio imortal=20 disfar=C3=A7ado em crian=C3=A7a menina". Ser=C3=A1 preciso dizer = que a Lolita de Lichberg=20 tamb=C3=A9m est=C3=A1 presente aqui, nos bastidores? A menina de = Lichberg tamb=C3=A9m =C3=A9=20 metade dem=C3=B4nio, metade v=C3=ADtima de uma maldi=C3=A7=C3=A3o = e, como seu amante, sujeita=20 a uma compuls=C3=A3o vinda do passado. Em Lichberg, h=C3=A1 = at=C3=A9 mesmo um prazo=20 temporal preciso para o feiti=C3=A7o entrar em a=C3=A7=C3=A3o. = Quando o narrador deixa=20 Lolita, ela o morde na m=C3=A3o com toda a for=C3=A7a de sua = boquinha. "Essas=20 cicatrizes do amor", confessa a v=C3=ADtima a seus ouvintes, "se = conservaram=20 indel=C3=A9veis, mesmo 25 anos mais tarde." Encontramos o mesmo = intervalo de=20 tempo quando Humbert v=C3=AA Lolita pela primeira vez -seu = primeiro amor=20 reencarnado, aquela de cujo encantamento ele jamais escapou: "Os = 25 anos=20 que vivi desde ent=C3=A3o reduziram-se a um ponto latejante e se = desvaneceram."=20

Perda de identidade
Em seu caso, tamb=C3=A9m, = um quarto de=20 s=C3=A9culo n=C3=A3o foi capaz de extinguir a magia do primeiro = amor-maldi=C3=A7=C3=A3o. E o=20 padr=C3=A3o -=C3=A9 o padr=C3=A3o de todas as hist=C3=B3rias de = amor e de morte- persiste. O=20 que se repete compulsivamente ao longo dos anos sempre termina por = explodir em viol=C3=AAncia. A hist=C3=B3ria de Lichberg nos conduz = =C3=A0 cena, que=20 lembra um sonho, de um assassinato dram=C3=A1tico e grotesco. A = cruel Lola=20 chama seus amantes a competirem por ela. Ela amar=C3=A1 aquele que = se revelar=20 mais forte -eles crescem at=C3=A9 seus ossos racharem; amar=C3=A1 = o mais velho -o=20 cabelo cai de suas cabe=C3=A7as; amar=C3=A1 aquele que tem a barba = mais comprida e=20 feia -longos p=C3=AAlos ruivos se projetam dos rostos distorcidos = dos irm=C3=A3os=20 Walzer, que ent=C3=A3o, aos gritos de f=C3=BAria e desespero = bestial, se atiram=20 sobre Lola e a estrangulam. "Fale pela =C3=BAltima vez -ou = ir=C3=A1s ao inferno com=20 sua beleza tr=C3=AAs vezes amaldi=C3=A7oada." O final do livro de = Nabokov tamb=C3=A9m =C3=A9=20 uma morte fantasmag=C3=B3rica, que lembra algo sa=C3=ADdo de um = sonho. Humbert e=20 Clare Quilty, os dois amantes de Lolita, se misturam nessa cena,=20 tornando-se os g=C3=AAmeos que foram desde o in=C3=ADcio em = Lichberg. O sedutor de=20 Lolita, Quilty, =C3=A9 a sombra escura de Humbert, seu segundo eu. = Em sua=20 briga, eles chegam a perder suas identidades gramaticais: "Rolei = sobre=20 ele. Rolamos sobre mim. Rolaram sobre ele. Rolamos sobre = n=C3=B3s". Quando=20 Humbert finalmente consegue matar seu alter ego -o que =C3=A9 = dif=C3=ADcil, j=C3=A1 que=20 as balas no corpo de Quilty, em lugar de destru=C3=AD-lo, parecem = lhe infundir=20 nova energia-, ele sela sua pr=C3=B3pria sorte. Algumas semanas = mais tarde,=20 tamb=C3=A9m Humbert, o s=C3=A1tiro tr=C3=A1gico, =C3=A9 um homem = morto.

A arte tem=20 a =C3=BAltima palavra
No conto de Lichberg, n=C3=A3o = =C3=A9 o rival quem =C3=A9 morto,=20 mas a mulher. Mas Nabokov tamb=C3=A9m brinca com essa variante. = N=C3=A3o apenas o=20 "leitmotiv" de cita=C3=A7=C3=B5es de "Carmen" atrai seu leitor = at=C3=A9 o fim por essa=20 trilha falsa, sugerindo que o amante tra=C3=ADdo pode acabar por = disparar=20 contra sua amada infiel. Mesmo em seu adeus a Lolita, Humbert = flerta com a=20 id=C3=A9ia de sacar seu rev=C3=B3lver e fazer algo est=C3=BApido. = Como sabemos, a gr=C3=A1vida=20 senhora Schiller, em quem Lolita se transformou, =C3=A9 poupada = desse=20 fim.
Indiretamente, por=C3=A9m, a maldi=C3=A7=C3=A3o ainda = parece se irradiar da obra=20 de Lichberg. Lola =C3=A9 assassinada logo ap=C3=B3s a morte de sua = filha. Lolita=20 morre nas semanas seguintes ao parto de sua filha natimorta.
A = =C3=BAltima=20 palavra, =C3=A9 claro, n=C3=A3o =C3=A9 da morte, mas da arte. = Lolita e sua hist=C3=B3ria,=20 repleta de sangue, tutano e lindas moscas verdes reluzentes, fazem = de=20 Humbert um escritor. O romance termina com sua esperan=C3=A7a da = =C3=BAnica=20 imortalidade que ele e sua musa poder=C3=A3o dividir: o = ref=C3=BAgio da arte. O=20 amante do conto de Lichberg segue o mesmo caminho. Tamb=C3=A9m ele = =C3=A9 iniciado=20 na arte por Lolita. Quando conclui sua hist=C3=B3ria, a condessa = -que o ouviu=20 de olhos fechados- murmura: "Voc=C3=AA =C3=A9 um poeta". Existem = apenas tr=C3=AAs=20 possibilidades, pelo menos at=C3=A9 que algu=C3=A9m nos mostre uma = quarta.
A=20 primeira =C3=A9 que estamos na presen=C3=A7a de uma dessas = coincid=C3=AAncias fortuitas=20 que ocorrem repetidas vezes na hist=C3=B3ria da arte e da = ci=C3=AAncia. Essa=20 possibilidade n=C3=A3o pode ser exclu=C3=ADda. Mas, pelas barbas = do profeta, isso=20 seria um verdadeiro milagre.
A segunda possibilidade =C3=A9 que = Nabokov=20 tinha conhecimento do conto de Lichberg e, metade inserindo e = metade=20 apagando seus rastros, se prestou =C3=A0quela arte da = cita=C3=A7=C3=A3o =C3=A0 qual Thomas=20 Mann, ele pr=C3=B3prio mestre nela, dava o nome de "pl=C3=A1gio de = alto n=C3=ADvel".=20 Pl=C3=A1gio? Um absurdo. Afinal, a literatura sempre envolveu a = repeti=C3=A7=C3=A3o de=20 motivos j=C3=A1 familiares: em que ela consiste, sen=C3=A3o em = literatura?=20 Entretanto, deixando isso de lado, essa segunda possibilidade = =C3=A9 t=C3=A3o=20 improv=C3=A1vel quanto a primeira. Ela n=C3=A3o combina com = Nabokov. Alus=C3=B5es a Poe,=20 Proust ou Puchkin, a Shakespeare, Chateaubriand ou Joyce, que = pululam em=20 sua obra, possuem uma val=C3=AAncia que alus=C3=B5es a um escritor = menor e=20 desconhecido jamais poderiam ter. Nabokov n=C3=A3o tinha = necessidade de plagiar=20 e tampouco teria enobrecido um Von Lichberg, citando o nome de sua = hero=C3=ADna.
Isso deixa a terceira possibilidade como o = palpite mais=20 plaus=C3=ADvel. De alguma maneira misteriosa, ""A Gioconda = Maldita", de=20 Lichberg, caiu nas m=C3=A3os de Nabokov. Folheando o livro, ele = poderia ter=20 topado com a hist=C3=B3ria da ninfeta, e assim o tema teria = come=C3=A7ado a passear=20 por sua mente. Ele esqueceu a hist=C3=B3ria ou pensou t=C3=AA-la = esquecido. Tamb=C3=A9m=20 desse fen=C3=B4meno, a criptomn=C3=A9sia, a hist=C3=B3ria da arte = oferece exemplos=20 suficientes.
D=C3=A9cadas mais tarde, atra=C3=ADdos =C3=A0 = superf=C3=ADcie por novas iscas,=20 nomes e partes dos detalhes come=C3=A7aram a sair das profundezas = de sua=20 mem=C3=B3ria. O momento de maior acerto ao escrever, explicou = Nabokov em=20 entrevista que concedeu =C3=A0 televis=C3=A3o em 1966, lhe ocorria = quando ele se=20 percebia indagando: "Como isso veio at=C3=A9 mim? Como =C3=A9 que = existia em minha=20 cabe=C3=A7a antes mesmo de eu pensar nisso?". Tal =C3=A9 a = gra=C3=A7a da inspira=C3=A7=C3=A3o. Como=20 a b=C3=AAn=C3=A7=C3=A3o b=C3=ADblica de duas faces, ela pode vir = do alto, mas tamb=C3=A9m pode=20 ascender dos calabou=C3=A7os da mem=C3=B3ria.
O patinho feio e = o cisne soberbo=20 -se essa imagem remete em demasia aos contos de fada, ela = tamb=C3=A9m pode ser=20 expressa mais tecnicamente. Heinz von Lichberg, que n=C3=A3o = deixava de possuir=20 talento, mas era abertamente imaturo, se ocupou em fabricar sua = "Lolita"=20 com pano, madeira, papel e barbante. Vladimir Nabokov usou = materiais=20 semelhantes -mas, com eles, criou um papagaio que desapareceu no = c=C3=A9u azul=20 da literatura.


Michael Maar =C3=A9 pesquisador e = ensa=C3=ADsta alem=C3=A3o. A=20 vers=C3=A3o integral do artigo acima foi publicada no "Times = Literary=20 Supplement".
Tradu=C3=A7=C3=A3o de Clara = Allain.

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----- Original Message -----
Sent: Monday, August 02, 2004 3:33 PM
Subject: Fw: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa = consequ=D0=99ncia=20 extraordinariamente ...
 
----- Original Message -----
Sent: Monday, August 02, 2004 8:43 AM
Subject: Re: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa = consequ=C3=AAncia=20 extraordinariamente ...
 
PS: I forgot to tell=20 you that "suspension dots" in Portuguese are called "retic=C3=AAncias" ( = "reticences"=20 wouldn=C2=B4t seem to be VN=C2=B4s tactics ...nor the dotting lines on = the wings=20 of the butterfly, nor VN=C2=B4s play with "Dolores" on a = dotted=20 line).
J.
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